Transcrito da coleção Mistérios do Desconhecido, da Abril Livros
Quem visita o litoral escarpado da Escócia, na costa leste de Edimburgo ouve falar de uma estranha lenda sobre episódios que teriam ocorrido a muitos anos no vilarejo de North Berwick. Os detalhes dessa história podem se alterar a cada versão, porém as personagens se mantêm as mesmas: um bando extremamente sinistro de bruxas. Se dermos crédito à lenda – embora nestes casos sempre seja boa certa cautela – no outono de 1590 um grupo de perversos bruxos e bruxas reuniu-se para executar um ritual hediondo dentro de uma igreja vazia não muito longe do mar do Norte.
Seus propósitos eram ao mesmo tempo fantásticos e terríveis, pois planejavam controlar as forças da natureza e modificar o curso da história da Escócia, provocando uma horrível tempestade no mar. No interior daquela pequena igreja, as bruxas se amontoaram em volta de um gato assustado, escolhido como instrumento de seu feitiço. Para começar batizaram o pobre animal numa cerimônia ritualística e depois torturaram-no cruelmente, balançando-o entre as chamas de uma fogueira ardente. Em seguida ataram pés e mãos do cadáver de um homem, cujo corpo haviam roubado de um cemitério, às patas do gato e prenderam os órgãos sexuais retirados do cadáver mutilado à barriga do felino.
Concluído o ritual, as feiticeiras levaram sua grotesca oferenda até o cais do vizinho vilarejo de Leith, jogando-o ao mar. Imediatamente, continua a lenda, desabou uma tempestade horripilante que tingiu de negro os céus, enquanto o uivo dos ventos ecoava sobre mar revolto. Um navio que empreendia a travessia de Kinghorn a Leith foi tragado pela borrasca e se partiu em pedaços, matando muitos marinheiros. No entanto essa tragédia pouco fez para saciar a sede de sangue das bruxas de Berwick. Seu alvo era outra embarcação. Naquela noite, estava programada a viagem de uma nau real, que faria a travessia da Dinamarca para a Escócia. A bordo, ao lado de sua noiva, estava Sua Majestade o rei James VI da Escócia, que mais tarde viria a ser coroado rei James I da Inglaterra. Para decepção das megeras de Berwick a nau real escapou ilesa. Teriam que tomar outras providências.
A história da tentativa de assassinato do rei veio à luz logo em seguida, no decorrer de uma investigação sobre suspeita de prática de feitiçaria na região de Edimburgo. Uma jovem criada chamada Gilly Duncan, conhecida por suas habilidades para curar enfermos, confessara ter evocado o auxílio do demônio para ampliar seus poderes. O fato de essa confissão ter sido proferida sob violenta tortura não fazia a menor diferença, pois esse procedimento era rotineiro nos casos que envolviam a prática de feitiçaria. A pobre jovem foi forçada a delatar seus cúmplices e implicou assim cerca de setenta das mais destacadas personalidades de Edimburgo.
Assim que o testemunho da jovem chegou ao conhecimento do rei, ele decidiu acompanhar o interrogatório das outras feiticeiras. Começou por ouvir Agnes Sampson, uma senhora séria e matronal. Agnes recusou-se a confessar crime algum e seus carcereiros puseram mãos à obra. Primeiro despiram-na, depois lhe arrancaram os pelos buscando em seu corpo uma marca demoníaca que a incriminasse – sinal ou mancha que, segundo se acreditava, denunciaria o lugar que uma bruxa supostamente ofereceria ao diabo para que ele sugasse seu sangue. Quando encontraram uma marca, começou a tortura. Amarraram uma corda áspera no pescoço de Agnes e com uma engenhoca iam-lhe aplicando violentos safanões, que provocavam dolorosos ferimentos. Em seguida enfiaram um ferro, o “cabresto de bruxa” na boca da velha senhora: dois pinos espetavam-lhe a língua e mais dois perfuravam-lhe as faces. Depois de vários dias nessas condições, sem que ao menos o sono lhe fosse permitido, Agnes também começou a falar.
James ouvia as palavras que jorravam de sua boca. Agnes disse tudo que lhe veio à mente. Admitiu não só ter usado encantamentos para curar, como cultuar secretamente seu demônio, ou espírito do mal, no seio de sua própria família, através de um cão chamado Elva. Relatou também o que mais interessava ao rei: participara de uma reunião ao lado de noventa bruxas e seis bruxos. Todos haviam se embriagado de vinho e caminhado depois até a igreja de Berwick, na qual teriam reverenciado satã através de cânticos e obscenas trocas de beijos. Contou que velas negras iluminavam a igreja, enquanto Gilly Duncan tocou uma alegre melodia numa harpa judaica. O crédulo James sentiu-se tão fascinado por este detalhe que ordenou que lhe trouxesse Gilly e sua harpa para fazer-lhe uma demonstração.
A confissão prosseguiu, descrevendo o ritual com o gato e a conspiração para pôr fim à vida do rei. Quando James se lembrou de que sua viagem à Escócia fora turbulenta, concluiu que estivera de fato ameaçado de morte por ímpios hereges. Agnes foi condenada e queimada na fogueira, com ela também Gilly Duncan e mais dois participantes. James, que se considerava um erudito, redigiu um tratado – Demonologia –, com base em suas observações. Em 1603, após a morte de sua prima Elizabeth I, da Inglaterra veio a assumir também o trono daquele país. Ao entrar em contato com os estatutos ingleses relativos a prática de bruxaria considerou-os extremamente tolerante; por isso, tratou de estabelecer leis mais severas, deflagrando uma longa série de ruidosos julgamentos por prática de feitiçaria na Inglaterra.
Se daquela velha igreja em North Berwick emanou ou não algum mal verdadeiro, nunca se saberá. A maioria dos pesquisadores atuais desconsidera confissões como as de Gilly Duncan e Agnes Sampson, ambas proferidas sob sofrimento intenso. Além do mais, diversos historiadores zombam da simples ideia de um grupo de feiticeiros supostamente aliados ao demônio, que tenta cometer um assassinato provocando uma tempestade em alto mar. E há ainda quem rejeite ceticamente a lenda de Berwick, apesar de acreditar seriamente na eficácia da magia. A este último grupo pertencem os feiticeiros modernos, cujo argumento é o de que a história de Berwick deturpa o verdadeiro caráter de seus ancestrais nas cidades, florestas e fazendas da antiga Escócia. Hoje em dia um número cada vez maior de estudiosos dedica-se às tradições da magia e feitiçaria e esses modernos feiticeiros encaram a lenda de Berwick como uma amostra típica da vasta quantidade de casos que tem sido erroneamente tomado como fatos históricos, chegando até a fundamentar pressupostos a respeito da feitiçaria. Acreditam, com certa razão, que os registros de julgamentos reunidos pelos caçadores de bruxas através dos séculos revelam uma imagem absurdamente injusta de seus misteriosos predecessores em épocas distantes.
Tais objeções estão permeadas pela ideia de que a história de Berwick, como muitas outras lendas, transforma em demônio cristão os Deuses da gente simples como Gilly Duncan, que provavelmente não era adoradora do diabo, mas apenas pagã. Os feiticeiros modernos afirmam que muitas das vítimas de condenações por prática de feitiçaria eram praticantes de uma religião profundamente arraigada na Europa antes da expansão do cristianismo. Alegam que, como em diversas lendas similares, a história de Berwick interpreta os motivos da reunião dos pagãos escoceses como intrinsecamente malévolos, sem sequer supor que essas pessoas pudessem ser boas e bem-intencionadas.
Talvez a lenda seja típica. Como a maioria das histórias de bruxas, descreve uma conspiração e um feitiço funesto secretamente desencadeado por um grupo de depravados. Mais ainda reflete uma imagem vívida e fantasiosa de praticantes de magia, que terminou impregnando nossa concepção atual de feitiçaria, tornando-a altamente estereotipada. Essa imagem seria ainda mais assustadoramente rica em detalhes no final do século XVI, quando teoricamente teria ocorrido o episodio de Berwick. Na época de James VI, as feiticeiras eram vistas como adoradoras de Satã. Consideradas perigosas até mesmo isoladas, foram julgadas ainda mais ameaçadoras por terem se agrupado como uma comunidade anticristã que se mantinha unida através de ritos coletivos e da subserviência ao demônio.
Não se pensava que as bruxas nascessem naturalmente perversas. Pelo contrário: seriam heréticas, cristãs que caiam em pecado, vítimas de armadilhas cuidadosamente arquitetadas pelo próprio Príncipe do Mal que as coagia a participar de cerimônias sacrílegas distorcendo suas convicções na fé e na liturgia cristãs. Ensinava-se às crianças que Satã arrebanhava seus discípulos entre a gente simples, que conquistava nos momentos de maior dificuldade: pobreza, desespero, doença ou desânimo. As mulheres costumavam ser vistas como feiticeiras em potencial, embora homens também pudessem ser recrutados e até mesmo certas crianças. Satã era ardilosamente imprevisível nos métodos para seduzir novos adeptos. Poderia surgir inicialmente na forma de um animal ou talvez assumir uma aparência humana, trajando-se como nobre ou padre. Sempre fazia promessas: para o órfão daria casa; para a viúva, um amante; para o fazendeiro aniquilado pela seca, uma nova primavera.
Mas após as promessas vinham ameaças e as exigências da mais absoluta lealdade e obediência. E até mesmo quando ele quebrava as promessas, quando a casa prometida era na verdade horrível, ou quando a primavera tão esperada simplesmente desaparecia, sua cobrança permanecia. Finalmente Satã forçava seus candidatos a se comprometerem através de um pacto demoníaco. As novas feiticeiras deveriam renunciar a Deus, contraindo laços eternos com o diabo.
Daquele ponto em diante, as feiticeiras seriam encorajadas a atrapalhar a vida dos cristãos. Maleficium era o nome do dia propício para a prática secreta do mal; e, para que suas feiticeiras se transformassem em fontes poderosas de desarmonia Satã lhes conferia poderes sobrenaturais. As bruxas conseguiam transformar-se em sapos, corvos ou pirilampos, tornando-se até invisíveis. Atormentavam os vizinhos arruinando suas colheitas matando seu gado e sugando a vida de bebes ainda no útero.
Os ajudantes de Satã também utilizavam a magia para disseminar impotência, esterilidade, doença, insanidade e morte. Satã reunia suas tropas periodicamente, durante encontros conhecidos como Sabás. Para comparecer ao local da convocação – em geral encruzilhadas ocultas no fundo das florestas, ou no topo de montanhas –, os seguidores do demônio precisavam escapar de seus leitos sem que seus cônjuges percebessem; às vezes deixavam em seu lugar uma varinha encantada, que assumiria sua aparência caso o marido ou esposa despertasse.
Depois se untavam com um unguento feito com a carne de crianças assassinadas e voavam para o local do sabá montados nas costas de um porco, em uma estaca de madeira ou em uma vassoura. Assim que chegavam, uniam-se a Satã em perversas paródias dos sacramentos cristãos, mergulhando na degradação humana sob todas suas formas, desde atos bestiais até canibalismo e incesto. Não se sabe se essas diabólicas feitiçarias foram mesmo praticadas por pessoas reais, e essa questão suscita debates entre os historiadores. Alguns asseguram que não e que, se de fato existiram grupos de adoradores do diabo, devem ter sido extremamente raros. No entanto essa visão lúgubre e ameaçadora da bruxa predominou na Europa durante muitos séculos, com imensas repercussões na vida da população. Em diversas ocasiões a preocupação com práticas demoníacas transformou-se em histeria religiosa. O exemplo mais notável foi a prolongada perseguição às bruxas nos séculos XV, XVI e XVII, levando à morte centenas de milhares de pessoas acusadas de bruxaria. Muitos eram culpados de um único crime hediondo: despertar ciúme dos vizinhos.
A grande maioria das acusações era feita com base em confissões tão “válidas” ou “reveladoras” quanto às de Gilly Duncan e Agnes Sampson. A imagem estereotipada dos filhos e filhas de Satã que conduziu as atitudes do rei James e engendrou a grande caça as bruxas na Europa é nitidamente oposta à imagem cultivada pelos modernos praticantes de feitiçaria. Os feiticeiros da atualidade consideram-se parte do renascimento de uma ancestral religião da natureza, um culto que antecede ao cristianismo e não se opõe especificamente aos ensinamentos de Jesus. Essa religião, que se denomina Wicca, relaciona-se com as estações e em vez de vincular-se às maldades e aos malefícios prega o jubilo e as celebrações. Seus seguidores veneram uma antiga divindade chamada Deusa-Mãe, que teria sido adorada em sociedades agrárias de épocas imemoriais. Alguns ramos da Wicca também cultuam a divindade masculina, relacionada com o antigo Deus Chifrudo, senhor da caça e da morte, distante da figura de Satã.
A discrepância entre o estereotipo histórico da bruxa e os conceitos subjacentes à prática da religião Wicca sublinham o fato de que a imagem da feiticeira sempre foi altamente cambiante. O conceito de bruxaria como prática diabólica foi gradualmente formalizado durante a Idade Média pela Igreja Romana, na medida em que ela tentava consolidar na Europa suas bases, até então bastante frágeis. Transformar a feitiçaria em ameaça foi útil para a Igreja, tanto para erradicar o desafio dos heréticos, quanto para sufocar as reminiscências de seitas pagãs que continuavam a florescer no continente.
Mas os padres da Igreja não precisaram partir do zero para construir o espectro de um satanismo anticristo. Na verdade, reutilizaram uma antiga receita, acrescentando apenas novos ingredientes a um velho caldo de superstições e temores. A imagem alimentada pela Igreja, da bruxa como a esposa de Satã, nasceu de múltiplas influências – inclusive práticas pagãs, folclore e a crença nos poderes da magia muito arraigada entre os europeus. No entanto, talvez a influência mais profunda tenha sido a das mitologias que moldaram cada aspecto do pensamento e das crenças das culturas europeias. As mitologias do Oriente Médio, da Grécia, de Roma e da Europa do norte estão repletas de seres superiores e inferiores que corporificam certos traços das bruxas e praticam artes posteriormente atribuídas a elas.
Alguns dos mitos que moldaram a concepção de feitiçaria têm sido transmitidos desde as mais antigas sociedades. Entre eles, o mais relevante é o que descreve uma figura profundamente ambivalente chamada Deusa-Mãe. Não se sabe exatamente quando teria se iniciado o culto a Deusa-Mãe. Contudo, há provas instigantes indicando que essa crença pode ter se originado na aurora da humanidade, por volta do final do período paleolítico, quando o Homo Neanderthalensis deu lugar ao Homo Sapiens. Embora as pinturas das cavernas daquela época longínqua retratem principalmente animais, mostrando as raras imagens de homens ocultas por máscaras que sugerem alguma atividade mágica, quase todas as esculturas encontradas representam mulheres. Cerca de 131 entalhes gravados em pedras, ossos e presas de mamute, foram descobertos numa extensa área geográfica, desde a França, no oeste, à Sibéria no leste, estendendo-se de Willendorf, na Áustria, até os Bálcãs, no sudeste da Europa.
Conhecidas como figurinhas de Vênus, parecem referir-se a uma Deusa feminina aos poderes mágicos da mulher. As figurinhas de Vênus são interpretações altamente estilizadas das formas femininas. Algumas revelam forte semelhança com a arte moderna – o que não surpreende, desde que elas conquistaram a imaginação de muitos artistas dos séculos XIX e XX, que as viram em museus da Europa.
As figuras geralmente estão nuas, são obesas, e suas feições são quase irreconhecíveis tamanha a ausência de detalhes. Os quadris, seios e triângulos púbicos bastante exagerados transformam-nas mais em símbolos do poder feminino de gerar novas vidas do que em representações de mulheres reais. Algumas amostras ostentam o ventre dilatado de uma grávida. Nunca houve provas conclusivas a respeito do uso dessas estatuetas em cerimônias religiosas. Na verdade, a ênfase na representação de sugestões de fertilidade e sexualidade levou alguns antropólogos a tomarem-nas como representantes de arte erótica ou, na melhor das hipóteses, talismãs confeccionados para casais que desejassem conceber. Recentemente os especialistas têm atribuído às Vênus um significado maior. O famoso mitólogo Joseph Campbell, por exemplo, considera que elas provam que – até mesmo na Idade da Pedra – o corpo da mulher era reverenciado como foco de força divina. Chamando atenção para o fato de que algumas foram esculpidas em locais semelhantes a altares e de que todas estão feitas sem os pés, podendo ser reverentemente fincadas eretas no solo, Campbell refere-se às Vênus como os primeiros trabalhos de arte sacra.
Ele encontrou duas explicações plausíveis para esses misteriosos entalhes, sendo que ambas parecem lançar uma nova luz sobre muitas das crenças mais recentes em relação à feitiçaria. A possibilidade inicial é a de que o culto à Deusa-Mãe, geralmente associada a civilizações agrárias posteriores, teria de algum modo se originado nas primeiras sociedades de caçadores-coletores. Outra alternativa seria encarar as figurinhas de Vênus como a mais antiga expressão artística de um tema eterno: a mulher doadora de vida. Seja qual for a verdade, parece que estaria penetrando na psique humana uma ideia ao mesmo tempo fundamental e inquietante. De acordo com a explicação de Joseph Campbell: “Não resta dúvida de que nas épocas mais remotas da História do homem a força mágica e misteriosa da fêmea era tão maravilhosa quanto o próprio universo; e isto atribuiu à mulher um poder prodigioso, poder este que tem sido uma das principais preocupações da parte masculina da população – como quebrá-lo, controla-lo e usá-lo para seus próprios fins.”
As consequências dessa ruptura primordial no relacionamento entre homens e mulheres viriam a ter papel nas mitologias de diversas culturas. Além do mais, em termos práticos, essa mesma tensão contribuiria para o aparecimento de devastadoras turbulências sociais, tal como a grande perseguição às bruxas desencadeada na Europa medieval. O pleno florescimento do culto à Deusa-Mãe aguardou o surgimento das sociedades agrárias mais avançadas do período neolítico. Por volta do quinto milênio antes de Cristo, os povos do Oriente Médio começaram a estabelecer-se em aldeias, com uma economia agrária. Aprenderam a semear trigo e cevada e a domesticar animais como cabras, ovelhas, porcos e vacas. Formas de artesanato como tecelagem, cerâmica e carpintaria também se refinaram na época. Um dos resultados dessas mudanças foi o grande realce do papel das mulheres na sociedade.
Nas culturas antecessoras, centralizadas na caça, ainda que as mulheres fossem reverenciadas por seu poder de gerar filhos, permaneciam limitadas basicamente ao trabalho na comunidade. Cabendo aos homens a tarefa de providenciar o sustento básico. Agora, as mulheres supriam as necessidades dos bebês e também preparavam os alimentos, além de se encarregarem de plantar e colher. Nas mentes dos machos e das fêmeas, as mulheres tornaram-se simbolicamente vinculadas à produtividade da terra. É grande a multiplicidade de figurinhas do auge do período neolítico, de 4500 a 3500 a.C, que traduzem uma intenção religiosa com maior nitidez do que as Vênus do paleolítico. Dois mil anos se passariam antes que a escrita fosse inventada, mas mesmo sem dispor de documentação escrita os especialistas foram capazes de fundamentar hipóteses sobre o papel desempenhado pelas figurinhas neolíticas.
Sua função não teria sido radicalmente diversa da arte sacra atual. Eram mantidas em altares caseiros para inspirar preces ou para centralizar a meditação, valorizadas tanto por seu valor decorativo como pela proteção que trariam a casa. Para as parturientes, as estatuetas significavam uma assistência mágica – ainda que fosse apenas psicológica. Para os fazendeiros, que as levavam para os campos, trariam sorte na colheita e segurança para o gado. A Deusa retratada pelas estatuetas neolíticas é mutável e multifacetada. As figuras eram basicamente representações da maternidade: poderiam estar de cócoras parindo seus filhos, oferecendo seus seios com as mãos ou apontando para seus órgãos genitais com um dos dedos. Mas a Deusa também personificava a terra, podendo ser mostrada entre suas plantas e seus animais.
Várias estatuetas representam a Deusa colhendo flores, cercada por leões e bodes, cavalgando nas costas ou nos chifres de touros. Desde o início percebeu-se que havia nessas representações um paradoxo. A Deusa era aquela que doa a vida, mas também aquela que a leva consigo. A seu redor girava todo o ciclo da existência humana. Era, na memorável definição de Joseph Campbell, “o útero e a sepultura; a porca que devora sua ninhada”. Enquanto certas imagens a representam de braços abertos e acolhedores, outras mostram-na empunhando as serpentes da destruição.
Por volta do ano 4000 a.C., o povo que agora chamamos de Sumério começou a estabelecer-se nos baixios sedimentares dos rios Tigre e Eufrates. Lá cultivaram o rico solo da Mesopotâmia, a cada ano fertilizado pelas cheias dos rios. Os Sumérios aprenderam a fazer tijolos de barro, que secavam ao sol e utilizavam, com outros materiais, para erigir os mais antigos templos de que se tem notícia. Essas estruturas, que se erguiam sobre escadarias na forma piramidal do zigurate, apontavam para o alto, de maneira a unir simbolicamente a Deusa da terra aos Deuses dos céus.
Em algumas regiões, as aldeias agrárias cresceram e começaram a funcionar como centros comerciais, dos quais surgiram cidades como Ur, Eridu, Sippar e Nippur. Em cada uma dessas cidades a rainha ou princesa local passava a ser identificada com a Deusa. Nos 1500 anos que se seguiram, os avanços dos sumérios se repetiram e foram ultrapassados por povos de todo o Oriente. Próximo da Anatólia, no norte, ao Egito, no sul, da costa mediterrânea até o Irã. Em todos esses locais, a Deusa era a forma mítica dominante. Personificava o tempo e o espaço, representava o elemento no qual toda a vida encontra seu começo e seu fim, Fogo da Vida, a Deusa gerava a substância da qual se originavam plantas e corpos, sendo também aquela que recebia os já mortos num ciclo perene de reencarnações. Seus nomes, bem como as funções a ela atribuídas por cada cultura do Oriente Médio, entrelaçavam-se profundamente à medida que o comércio se expandia pela região. No Egito, foi vinculada ao mito da criação e à Deusa Nut e sua filha Isis, que recorreu à magia para gerar novas vidas após a morte de seu irmão e marido, Osíris.
Na Suméria era chamada de Inana e Ereshkigal; na Babilônia, Ishtar e Tiamat; e em Canaã seu nome era Astarte ou Anat. Caso as mitologias que ajudaram a formar essas culturas houvessem congelado neste ponto, o conceito de feitiçaria na época das grandes perseguições teria, sem sombra de dúvida, sido muito diferente do que veio a ser. Na verdade, é até possível que todos nós compartilhássemos da visão da religião Wicca acerca da feitiçaria: uma arte que gera e nutre a vida. Contudo, já havia se iniciado uma mudança profunda na imagem da Deusa, engendrada por um prolongado período de invasões na esfera da Grande-Mãe. Dos desertos do sul vieram as tribos guerreiras dos semitas, antigos caçadores que, por volta do quarto milênio antes de Cristo, pastoravam ovelhas e cabras.
Da Europa e do sul da Rússia chegaram ondas de invasores helênicos e arianos, criadores de gado, que provavelmente também descendiam de caçadores. Esses intrusos conquistaram as cidades de culturas agrárias e fizeram o máximo para erradicar as concepções fundamentalmente harmônicas e não-heróicas de natureza, nas quais vicejara o culto à Deusa. Os intrusos suprimiram as mitologias relacionadas com a Deusa-Mãe e reinterpretaram seu caráter, à medida que implantavam suas próprias crenças em divindades masculinas e guerreiras, em figuras de Deuses como Yahweh e Zeus.
A lenda babilônica de Marduk e Tiamat exemplifica a mudança de tratamento que as Deusas receberam nessa nova era mitológica. Tiamat, anteriormente cultuada pelos babilônios como a mãe de todos os Deuses, repentinamente começou a ser encarada como uma ameaça universal; ela passou a correr mundo na forma de um peixe gigantesco, que comandava demônios de toda espécie. Após um conselho das divindades masculinas nos céus da Babilônia, decidiu-se que o sol do bom Narduk confrontaria o mal da velha cruel. Marduk não apenas aceitou a tarefa que lhe fora imposta, como também eclipsou a grandeza de Tiamat enviando ventos que sopraram em sua garganta até que ela se arrebentasse em pedaços. Com os restos da Deusa, Marduk refez o universo.
Histórias semelhantes à da batalha entre Marduk e Tiamat são abundantes nas mitologias semitas do Oriente Médio. Essas lendas revisionistas, nas quais a Deusa é destruída ou, na melhor das hipóteses, casa-se e é relegada a um papel inferior, sobreviveram nas tradições bíblicas do Velho e do Novo Testamento, bem como nos mitos homéricos da Grécia e de Roma. Na Bíblia, encontramos Yahweh, o Deus de Israel, triunfando sobre Leviatã, um monstro cósmico do mar, claramente vinculado com uma divindade feminina anterior. Nas lendas gregas, vemos Zeus derrotar Tifon, metade homem, metade serpente, filho mais novo de Gaia, a Deusa da Terra. Quando começam as invasões nos domínios da Deusa, surge um novo tema recorrente na mitologia: um herói, Deus ou mortal, destrói uma corporificação monstruosa de uma Deusa que antes fora suprema e por fim recebe um tesouro valioso, que trará benefícios a toda a humanidade.
Uma variação está contida na lenda semita de Lilith que, tal como a lenda de Marduk e Tiamat, se vincula à história da criação. Lilith é uma das mais malévolas figuras mitológicas que derivaram da Deusa-Mãe. Criada juntamente com Adão, com o limo e o lodo da terra, deveria ser a mãe de toda a raça humana. Mas em vez disso, veio a reinar como a princesa dos súcubos, criaturas conhecidas por atacar e seduzir homens adormecidos, sugando de seus corpos todos os humores vitais. Se acreditava que Lilith atacasse recém-nascidos. Os meninos de até oito anos seriam seus alvos prediletos, mas as meninas também podiam ser suas vítimas, nas primeiras semanas de vida.
A ancestral lenda hebraica sobre Lilith conta que ela teria sido criada antes de Eva, para ser a companheira do homem no Jardim do Éden. Mas seu temperamento voluntarioso teria tornado impossível uma coexistência pacífica. Lilith resistia a qualquer tentativa de sujeição, recusando-se e a deitar-se sob Adão, na união conjugal. Finalmente ela fugiu e três anjos chamados Sanvi, Sansanvi e Semangelaf partiram em seu encalço. Conseguiram persegui-la até o Mar Vermelho, onde a encontraram desovando uma ninhada de filhotes do demônio, numa velocidade espantosa. Lilith jamais regressou ao Jardim do Éden; preferiu a Vênus vagar pela terra, sempre acompanhada por seu clã demoníaco. Para se precaver das visitas noturnas de Lilith, as famílias costumavam traçar um círculo mágico de proteção em torno dos berços das crianças, prática que ainda persiste em algumas partes do mundo. Acreditava-se que os dizeres “Adão e Eva, barrando Lilith”, encerrados em uma linha traçada com carvão, criaria uma barreira capaz de impedir seu malefício. Escrever na soleira da porta o nome dos três anjos que a perseguiram seria mais uma medida de proteção.
Nem todas as caracterizações semitas da Deusa eram tão extremas quanto à de Lilith. Uma variação mais sutil do mito surgiu com a introdução de um parceiro, que em diversas lendas aparecia alternadamente como irmão, filho, marido ou amante da Grande Mãe. Tammuz, o Deus babilônico da vegetação, filho e esposo da Deusa Ishtar, é típico dessa figura mitológica. Tammuz tinha equivalentes tanto no Deus sumério Dumuzi, esposo de Inana, como em Baal, o Deus cananeu da fertilidade, consorte de Anat. Tammuz estava intimamente associado ao cultivo de cereais, morrendo a cada ano após a colheita, para crescer de novo com a ajuda da Deusa.
O inicio e o fim dos ciclos agrários eram marcados por um festival anual em sua homenagem, com representações de sua morte e ressurreição. Alguns dos modernos seguidores da religião Wicca vêem esse Deus da vegetação como uma primeira versão do Deus chifrudo que viria a emergir plenamente nas mitologias da Europa do norte. Sua relação com a Deusa confirma no mínimo o vinculo da Grande Mãe com a natureza e o renascimento, num período em que sua figura estava em geral mais associada com a morte.
Esses aspectos mais sombrios da Deusa eram mais enfatizados na Grécia, onde o culto à Deusa-Mãe provavelmente foi introduzido através de duas culturas distintas: a de Creta e a de Chipre. Em suas obras publicadas na década de 20, a mitóloga inglesa Jane Ellen Harrison cita elementos dos primeiros cultos de mistérios da Grécia clássica que mostram uma divindade feminina reinando suprema, durante certo tempo, entre os Deuses e Deusas da mitologia pré-homérica. No entanto, essa Deusa não correspondia à figura da mãe doadora de vida adorada na antiga Mesopotâmia. Ao contrário, parecia lúgubre e nefasta.
Seu consorte era representado como uma cobra e nos festivais as oferendas eram porcos sacrificados na escuridão da floresta. Segundo a interpretação de Harrison: “Os seres cultuados não eram humanos racionais, nem Deuses cumpridores das leis, mas sim espíritos errantes, irracionais, essencialmente malévolos, fantasmas, assombrações e similares”. Tais espíritos eram reverenciados principalmente para que se retirassem para longe, sem causar problemas. Com poucas e notáveis exceções, tais como Afrodite e Atena, as divindades femininas da mitologia homérica viriam a assumir traços e comportamentos sombrios e ameaçadores, delineando o posterior mito europeu da bruxa. Mas esse processo de passagem, do culto a uma Deusa que continha tanto a vida como a morte, para um culto no qual o lado sombrio encobria sua luz, transcorreu como um processo gradual e que jamais chegou a um desfecho. Deusas e Deuses, seres de um nível mais alto ou mais baixo, possuídos pelo bem ou pelo mal, continuaram a surgir nas mitologias da Grécia e de Roma.
A Medusa é um bom exemplo. Uma das três Górgonas possuía víboras em lugar de cabelos e seu olhar era capaz de transformar homens em pedras. Mas o mito mostra que até mesmo ela possuía uma força geradora de vida. Quando o guerreiro Perseu cortou a cabeça do monstro com sua espada, a Deusa Atena interveio, para que Asclépio, o Deus da cura, colhesse uma amostra do sangue da Medusa. O sábio retirou um pouco de sangue de cada lado do corpo dela. O sangue do lado esquerdo foi usado para destruir os inimigos e o do lado direito destinou-se a curar e a ressuscitar os mortos. Talvez ainda mais amedrontadora do que a Medusa, se é que isto é possível, fosse a arqui-feiticeira Hécate, temível rainha do baixo-mundo. Considerada como senhora dos fantasmas, dos espectros, acreditava-se que possuía o poder de infligir loucura ao conjurar as mais terríveis visões. E tal qual ocorreria com as bruxas das lendas posteriores, pensava-se que seu poder atingia o ápice à meia-noite. Há histórias que falam de viajante noturnos que a teriam encontrado em lugares remotos e isolados, nas mesmas desoladas encruzilhadas em que as forças do mal parecem sempre se aninhar.
Segundo alguns relatos, Hécate media uns 30 metros de altura e vagava pelo campo acompanhada por uma matilha de cães selvagens. Outros descreviam-na com três cabeças – uma de cavalo com espessas crinas, outra de uma cobra sibilante, e por último estaria a de um cão selvagem. O uivar dos cães à noite anunciaria a aproximação de Hécate – dizia-se que apenas os cães podiam vê-la nitidamente. Os romanos, que adotaram muitas das divindades gregas na criação de sua própria e complexa mitologia, tentavam aplacar o ódio de Hécate colocando bolos de mel e corações de galinha como oferenda nas soleiras das portas, ou então depositando presentes nas encruzilhadas onde ela às vezes surgia.
Sacrifícios, a maneira mais tradicional de apaziguar o ódio divino, eram-lhe oferecidos regularmente, e inúmeras foram as criaturas mortas em seu nome: cães, ovelhas e até mesmo meninos. Ao longo da história das artes arcanas, o nome de Hécate tem sido sempre invocado em conexão com as bruxas e com os praticantes de magia negra. Circe, a maga loira, filha de Hélios, o Deus do sol, constitui outro protótipo de feiticeira que se delineou claramente na mitologia clássica. Na Odisseia, crônica de Homero sobre a conturbada jornada de volta a Lilitu, aqui representada num timbalho em tenncota, era uma pátria empreendida pelo guerreiro dos mais terríveis espíritos da mitologia suméria e inspirou Lilith, o demônio hebraico. Com suas presas e asas buscava homens para seduzir e crianças para matar. As bruxas medievais herdaram muitos de seus traços, inclusive o amor por gatos e corujas. Odisseu, após a guerra de Tróia, encontra Circe que desempenha um papel primordial, com seus poderes mágicos. Após ter sido banida para a ilha de Aiaia por envenenar seu marido, rei dos sarmatas, Circe passou a viver seus dias cantando e tecendo num maravilhoso palácio de mármore, cercado por esplendidas florestas. Quando Odisseu atracou na ilha habitada por Circe, enviou um grupo de reconhecimento sob o comando de seu fiel amigo, Euriloco. Assim que os exploradores adentraram a ilha, foram atraídos pela doce melodia do canto de Circe até o palácio dela. Em seu caminho os viajantes foram sendo rodeados por leões, tigres e lobos, que silenciosamente emergiam da floresta.
Naturalmente amedrontados, os homens ficaram aliviados ao constatar que as feras eram estranhamente mansas. Mal sabiam eles que, na verdade, esses animais eram um grupo anterior de marinheiros, semelhantes a eles próprios, que Circe havia enfeitiçado e transformado em feras. Acompanhados por esses homens-feras, Euriloco e seus companheiros aproximaram-se do palácio, sendo imediatamente seduzidos pela música de lá provinda. Logo Circe surgiu e convidou-os a entrar, para participar de seu banquete. Enquanto a maioria dos homens avançava de bom grado, Euriloco se deteve, invadido por uma intuitiva desconfiança. Dentro do palácio Circe acomodou os convidados e ofereceu-lhes uma refeição de queijo, cevada e vinho adoçado com mel. Todos desfrutaram fartamente dos alimentos, sem ao menos desconfiar que a feiticeira havia dado à bebida seu “toque malévolo”, sob a forma de uma droga poderosa.
Assim que tomaram a poção, os homens começaram a cair, subjugados, incapazes de resistir à magia da anfitriã. Dando a volta à mesa, Circe foi tocando cada um deles com sua varinha e transformando-os em suínos. Concluída sua tarefa, aprisionou seus novos cativos em chiqueiros e deu-lhes comida para porcos. Tendo testemunhado a desgraça de seus companheiros, Euriloco retornou à nau para relatar a Odisseu os estranhos acontecimentos. Foi apenas com o recurso aos poderes de uma erva mágica – uma planta lendária chamada “mole” – que o grande guerreiro conseguiu escapar da armadilha na qual caíra sua tripulação. Quando Circe descobriu que seus feitiços não eram capazes de atingir Odisseu, concordou em libertar seus homens.
Com o passar do tempo, a feiticeira apaixonou-se por Odisseu e acabou por dar a ele a ajuda necessária para concluir sua jornada de volta ao lar. A lenda da sobrinha de Circe, Medéia, obedece a um padrão semelhante, mas sem um final tão feliz. Medéia termina como a própria encarnação da bruxa malévola e vingativa, destruindo a todos que ousassem desafia-la. Medéia era filha do rei de Colquis, mas rompeu com o pai quando caiu de amores por Jasão, outro viajante famoso e aventureiro. Capitão da nau Argo e líder de sua tripulação, os argonautas, Jasão estava quase concluindo sua longa e árdua busca do velocino de ouro, um tesouro fabuloso que fora roubado do carneiro alado do Deus Hermes e que passara a ser avidamente procurado.
O amor de Medéia seria inestimável para Jasão, porque o pai dela estipulara uma série de tarefas aparentemente impossíveis de serem cumpridas para todos aqueles que desejassem possuir o velocino de ouro. Para conquistar seu prêmio, Jasão precisaria inicialmente dominar e emparelhar dois touros que bufavam fogo, para obriga-los em seguida a arar um enorme campo. Quando terminasse, deveria semear um punhado de dentes mágicos de dragão nos sulcos da terra e matar os inimigos que deste solo brotassem. Caso sobrevivesse a esses testes, Jasão obteria permissão para conquistar o velocino de ouro – mas antes deveria conseguir captura-lo, ludibriando para isso a vigilância atenta de um terrível dragão. Ao descobrir que Medéia tinha poderes mágicos, Jasão pediu-lhe ajuda e prometeu casar-se com ela.
Medéia concordou alegremente e entrou 1ogo em ação, para garantir o sucesso do amado. Após descrever-lhe as dificuldades que encontraria, preparou-lhe um unguento especial que continha o sangue de Prometeu, o titã que trouxera o fogo aos homens, explicando que, ao cobrir o corpo com aquele bálsamo, Jasão ficaria invencível por um dia. Na manhã seguinte, enquanto o rei e os cidadãos de Colquis o observavam do alto de uma colina, Jasão colocou-se a postos num campo aberto, diante dos ferozes touros que seriam seus primeiros oponentes. Labaredas irrompiam das narinas das feras, queimando a grama a seus pés.
Quando Jasão se aproximou, as bestas avançaram com estrondo, fazendo a terra estremecer sob seus cascos. Fortalecido graças à poção de Medéia, Jasão enfrentou os touros com calma e segurança, derrubando as ruidosas criaturas no solo. Seus companheiros aclamaram-no com alegria, quando colocou o jugo nos animais. E mais ainda quando, diante do olhar espantado do rei, Jasão começou a arar o campo de batalha, seguindo as instruções que recebera. Concluída a primeira tarefa, Jasão rapidamente semeou os dentes de dragão nos sulcos que cavara. De cada dente surgiu um terrível soldado brandindo suas armas e avançando para o ataque. Com sua espada e seu escudo, Jasão foi capaz de manter esse fantasmagórico exército à distância por certo tempo. Mas logo o herói viu-se a ponto de ser massacrado pelo ataque maciço.
Mais uma vez, o herói foi salvo da morte certa pela magia de Medéia. Obedecendo as instruções da feiticeira, Jasão arremessou uma enorme pedra no meio dos inimigos. Subitamente os soldados voltaram-se uns contra os outros e, tomados por fúria desvairada, golpearam-se e dilaceraram-se entre si. Em poucos minutos Jasão estava sozinho em meio a um campo repleto de cadáveres. Para conquistar o velocino de ouro, Jasão deveria ainda sobreviver a uma disputa com o dragão que guardava o galho do carvalho onde o tesouro estava escondido. O guerreiro aproximou-se cuidadosamente, retirando do cinto outra poção mágica preparada por Medéia. Espargiu algumas gotas do líquido no dragão e imediatamente a criatura, que jamais relaxara sua vigilância por um momento sequer, virou para o lado e caiu em sono profundo. Jasão esquivou-se do monstro adormecido, apanhou seu prêmio reluzente e escapou, para grande surpresa e indignação do rei. Levando Medéia consigo, Jasão correu a bordo do Argo e zarpou rapidamente. Jasão anda enfrentaria muitos perigos e, durante a fuga do reino de seu pai Medéia revelaria todo o horror de sua maligna natureza. Quando o rei enviou uma armada para perseguir a Argo, Medéia atraiu seu próprio irmão a bordo da nau em que ela estava com Jasão e o enfeitiçou. Assim que subjugou o jovem, Medéia matou-o friamente e cortou seu corpo em pedaços. Em seguida, cada vez que as embarcações de seu pai começavam a se aproximar da Argo, Medéia lançava ao mar um membro do corpo de seu irmão, obrigando o pai, dilacerado pela dor, a deter-se para recolher os restos mortais para o funeral de seu filho. Graças a essa tática diversionista, Jasão finalmente conseguiu escapar.
Figuras da mitologia clássica como Medéia, Hécate e Medusa não mais se assemelhavam à Deusa-Mãe das culturas anteriores, mas ainda conservavam uma natureza ambivalente de bem e mal, que sempre fora a marca da divindade feminina. Os romanos e gregos também cultuavam Deusas mais próximas do modelo original, e alguns dos ritos celebrados em homenagem a elas apresentam semelhanças com a concepção posterior do sabá das bruxas. Em Roma construiu-se um templo na colina Palatina no ano 204 a.C. para a Deusa-Mãe. Formas similares de adoração aconteciam na Grécia – o exemplo mais notável é o culto a Dionísio. Mais típicos, no entanto, eram os dignos mistérios Eleusinios, celebrados em homenagem a Demeter, Deusa da Terra e esposa de Zeus, rei dos Deuses. Os ritos de Demeter obedeciam a um padrão tradicional, observando o ciclo natural de morte e renascimento associado com as fases de cultivo. De todas as divindades da mitologia clássica, a Deusa da Lua, chamada Diana pelos romanos e Ártemis pelos gregos, seria a mais intimamente associada à magia.
Ártemis-Diana era a padroeira da fertilidade e da castidade. Raramente se envo1via em matanças indiscriminadas. Porém, até mesmo Diana possuía seu lado lúgubre. Bela, mas fria, era famosa por transformar seus possíveis pretendentes em animais. Conta-se que um caçador chamado Actaion por acaso viu-a nua, banhando-se na floresta. Para puni-lo, ela o transformou em veado e colocou seus próprios cães em seu encalço. Quando os animais estavam prestes a dilacerar seu dono, seus companheiros de caçada mataram-no a flechadas. Diana tinha também o poder de mudar sua própria natureza e aparência. Em determinadas manifestações era identificada como a ameaçadora Hécate de três cabeças.
Seus consortes seriam perversas criaturas semelhantes a corujas, conhecidas pelo nome de strigae, aves de cabeças e bicos enormes, garras vorazes e apetites abomináveis. As strigae atravessavam o céu à noite em busca de bebês momentaneamente sozinhos, para rasgar-lhes o ventre e devorar-lhes as entranhas. Conta-se que, ao raiar o dia, as strigaes assumiam a forma de velhas aparentemente inofensivas. As lendas acerca de strigaes parecem ter se originado entre os antigos povos germânicos do norte da Europa e estavam bem difundidas na época de Jesus.
O poeta Ovídio descreve como manter esses demônios devoradores de crianças a distância, tocando os arcos e soleiras do quarto do bebe com um ramo de arbustos e colocando um galho de pilriteiro na janela. E principalmente, aconselhava Ovídio, era preciso oferecer à faminta bruxa um substituto para o bebe, como por exemplo, as entranhas de um porco recém-nascido, dizendo: “Pássaros da noite, poupem a vida desta criança! Uma jovem vitima morre no lugar este bebezinho”. Alguns anos mais tarde, o romano Festus, em um trabalho sobre o significado das palavras, definiu formalmente as strigae como “mulheres que praticam feitiçaria e que eram chamadas de mulheres voadoras”. Mas as leis romanas nunca tomaram conhecimento de tais criaturas e mulher alguma jamais foi presa por ser uma feiticeira alada. O que de fato preocupava a elite governante – desde a substituição da lei romana – era a diferença entre a magia branca e a negra.
Os romanos bem-nascidos consideravam a primeira aceitável, mas puniam a magia negra da mesma forma que qualquer outra ofensa cívica envolvendo dano à pessoa ou à propriedade. Havia uma exceção: qualquer ato aparente de bruxaria que parecesse ameaçar o estado romano ou o bem-estar do imperador implicava reprimenda rápida e vigorosa. Houve, por exemplo, um jovem infeliz que fora visto gesticulando de maneira estranha enquanto recitava as vogais latinas num banho público. Embora estivesse simplesmente procurando curar uma dor de barriga, as autoridades, receosas de que ele pudesse estar tentando enfeitiçar o imperador, prenderam-no sumariamente. O rapaz foi torturado e morto. O duro tratamento dado à magia negra pelas leis romanas provavelmente preparou o terreno para a perseguição das supostas bruxas na Europa medieval. Mas as caçadas às bruxas e a morte nas fogueiras ainda estavam muito distantes, em um futuro que tardaria mais de um milênio.
Até o colapso do Império Romano, a palavra bruxo, na Europa, costumava designar apenas um praticante de magia – atividade relativamente corriqueira. Havia feiticeiros em quase todas as comunidades; eles cultivavam poderes mágicos com a intenção de alcançar objetivos práticos, tais como fertilizar os campos ou punir os inimigos. Embora eles pudessem eventualmente ter recorrido a espíritos maléficos para atingir seus propósitos, há poucos indícios de que houvessem realmente adorado diabos, como afirmaria posteriormente a Igreja Católica. Um túmulo descoberto no norte da Europa mostra que a pratica da magia no continente data de época muito remota – aliás, como em todas as partes do mundo. O sítio continha um esqueleto de uma feiticeira da Era do Bronze cercado pelos utensílios próprios de seu oficio: ossos de uma doninha, garras de um lince, vértebras de uma cobra, dentes de um cavalo, a lâmina quebrada de uma faca e estilhaços de pirita. Podemos apenas imaginar os poderes mágicos que esses artefatos teriam e as maravilhas que aquela feiticeira poderia criar.
Em registros históricos posteriores, as feiticeiras preparavam poções para inspirar amor, ofereciam talismãs e amuletos para proteger o corpo de ferimentos e recorriam à magia para curar enfermidades. Uma receita anglo-saxã para o tratamento de verrugas recomendava misturar “a urina de um cão e o sangue de um rato” para aplicar na pele. Feiticeiras dessa mesma região inventaram “uma bebida agradável contra a loucura” feita de gataria, absinto, lupino, rabanete, funcho, hortelã-de-gato, erva-moura-de-feiticeira, além de várias outras ervas, todas mescladas em uma forte infusão de cerveja. Essa fórmula, que data da era cristã, incluía uma dose de cristianismo. “Reze doze missas por sobre a bebida e entregue-a ao doente para que ele a sorva. Ele logo se recuperará”, aconselhava a feiticeira.
Desde épocas imemoriais dizia-se que todo mago possuía dois lados: o lado da luz e o da escuridão, o do bem e o do mal, exatamente como tantas feiticeiras míticas. Os povos do norte da Europa recorreram à magia para conquistar uma posição na sociedade às custas do bem-estar de seus vizinhos, ou simplesmente para dissipar sua melancolia. As antigas tribos tectônicas, tentando vingar-se de danos reais ou imaginários, reproduziam a figura de seus inimigos em bonecos de cera ou de massa. Mergulhavam os bonecos na água, enfiavam-lhes agulhas ou lançavam-nos às chamas, na esperança de afogar, ferir ou queimar o retratado.
Os anglo-saxões, por sua vez, recitavam um feitiço que encolheria seus oponentes aos poucos, até “ficarem do tamanho de um micuim”. Por essa dupla capacidade de fazer o bem e o mal, todo praticante de magia e feitiçaria era visto com profunda inquietude, por mais que estivesse ligado à tribo ou família. As lendas Celtas e germânicas refletem um arraigado temor do suposto controle exercido pelo feiticeiro sobre os mais assustadores poderes da natureza. Elas revelam que muito antes de os homens relacionarem a magia humana com os poderes de Satã, eles acreditavam que os feiticeiros podiam comandar as nuvens de uma tempestade, prejudicar as colheitas, trazer a fome e a peste. Ninguém podia se gabar de ser imune ao feitiço de um bruxo. Um mago irado seria capaz de influenciar o próprio processo da vida, tornando homens impotentes e induzindo rebanhos inteiros a abortarem suas crias.
Supunha-se que os estranhos seres aos quais se atribuía tais poderes, reservados por natureza, sentiam-se mais a vontade à noite, cavalgando nas costas de lobos ou javalis ou montados em estacas, em encontros secretos com as divindades dos céus e da terra. Uma antiga lenda nórdica narra a surpresa de um herói quando foi despertado do sono por um grande estrondo na floresta e saiu, vendo-se diante de “uma feiticeira de cabelos flutuantes” pronta para “um encontro mágico” com Skelking, o senhor dos céus na mitologia escandinava. Essas festas dos espíritos em meio à noite faziam parte de todo o folclore europeu, prenunciando as descrições cristãs que narrariam os encontros entre Satã e suas bruxas. Nas terras do norte, as reuniões de feiticeiros eram conduzidas pela Deusa Holda, esposa de Wotan, padroeira das fazendas, dos partos, dos casamentos e dos lares.
O nome e a natureza de Holda variavam de região para região. Alguns povos chamavam-na de Holle ou Frau Hoff, ou identificavam-na com a grande Deusa Freyja; para outros ela seria Bertha ou Perchta, Deusa da capa, Holda seria a equivalente germânica da Deusa da lua, Diana, venerada mais ao sul. A imensa horda que seguiria Holda incluiria as Valquírias, guerreiras dos céus nas lendas nórdicas, almas de crianças mortas, ou várias figuras demoníacas conhecidas pelo eufemismo de “as boas damas da noite”.
Holda era mais ativa durante os meses frios, principalmente no solstício de inverno, quando se pensava que seus passeios de inverno reavivavam o sol e garantiam boas colheitas para o ano seguinte. Quando ela fazia sua cama, as folhas cairiam na terra na forma de flocos de neve, Holda geralmente desempenhava o papel de uma Deusa maternal e protetora, mas quando ficava irada se transformava em uma megera de dentes enormes e longo nariz pontiagudo, o terror das crianças desobedientes.
Assim, a Deusa da fertilidade era capaz de tornar-se a rainha da violência; e, segundo algumas tradições, seus passeios noturnos eram tumultuados e destrutivos. Em lendas como a da Wilde Jagd – “caçada selvagem” – gangues de selvagens demoníacos, metade humanos e metade animais devastavam os campos, pilhando e devorando os corpos de suas vítimas. Espíritos masculinos também cavalgavam a seu lado durante a Wilde Jagd. Acreditava-se que Herne, o Caçador, uma divindade Celta que trazia chifres na testa, liderava um bando de lascivas criaturas estelares provocando tumultos semelhantes na Bretanha. Na região que hoje conhecemos como Escandinávia, a figura equivalente a Holda era a grande Deusa Freyja, que pertencia a um grupo de divindades conhecidas pelo nome de Vanir.
Basicamente associada à fertilidade, as Vanir deram à humanidade o poder de criar vida nova – tanto nos campos, entre os animais, como no lar. Atuavam também como vínculo com o mundo invisível graças a seus assombrosos poderes divinatórios, anunciando as estações e o futuro dos homens. Contudo, tal qual Holda e tantas outras Deusas gregas, também possuíam uma funesta capacidade de provocar violência. Seus feitos inspiravam um culto cujos ritos incluíam festas selvagens e orgíacas além de cerimônias sacrificais semelhantes às que seriam posteriormente atribuídas às reuniões de bruxas. Na condição de sacerdotisa das Vanir, Freyja era às vezes chamada de senhora dos mortos. Entre seus deveres incluía-se o de encontrar um lugar no céu para metade dos heróis mortos em combate – a outra metade era recebida por Odin, o Deus supremo do mundo nórdico.
Como muitos seres míticos da Grécia e de Roma, Freyja podia mudar de aparência: lendas nórdicas descrevem-na atravessando os céus na forma de uma ave, ou trovejando nas alturas dentro de uma biga puxada por gatos. Dona de uma lendária beleza e altamente promíscua, a Deusa era objeto de desejo entre os gigantes que viviam no mundo fabuloso de Jotunheim. Um ritual de bruxaria denominado Seior que, segundo o folclore, abriria a porta para os poderes proféticos de Freyja, ganhou matizes particularmente sombrios à medida que foi sendo transmitido a seus adoradores.
Os feiticeiros nórdicos tentariam atrair o mal para um inimigo colocando uma cabeça de cavalo com a boca aberta diante da casa dele. Um seiokona – praticante do ritual Seior – teria assumido a forma de um cavalo e atacado certo rei, ferindo-o mortalmente.
Na Islândia, uma mulher acusada de praticar o Seior foi levada à corte de um tribunal por tentar “cavalgar um homem até mata-lo”. Durante um rito divinatório denominado Seidr, uma vidente chamada Volva subia a uma plataforma alta e entoava cânticos mágicos até entrar em transe. E então ela pedia informações ao mundo dos espíritos, para poder responder às perguntas formuladas pelos fiéis. Tal rito só tinha sentido quando cumprido no seio de uma comunidade, por isso a Volva deveria viajar, visitando fazendas e comparecendo às festas para dar conselhos relativos às estações vindouras. Um relato acerca de um Seidr descreve um povoado na Groelândia gravemente assolado pela escassez de alimentos. Seus habitantes aguardaram pelas previsões de sua profetisa itinerante com grande interesse e muita ansiedade.
Para garantir o sucesso da profecia, prepararam uma farta refeição sacrifical composta de corações de todos os tipos de animal que conseguiram caçar. Assim que terminou o banquete, a Volva subiu a tradicional plataforma elevada e, trajando botas de couro bovino e luvas de couro de gato, sentou-se numa almofada estofada com penas de galinha. Quando convocou uma aldeã para cantar o encantamento que a colocaria num estado mental receptivo, uma jovem cristã apresentou-se como voluntária, afirmando que aprendera a canção quando menina. A jovem começou a entoar seu canto e a Volva logo caiu em profundo transe, no qual permaneceu por tempo razoável. Ao recuperar sua consciência, informou aos presentes que os cânticos haviam sido tão eficientes que os espíritos haviam se aglomerado para ouvi-los. Disseram-lhe que a carestia terminaria em breve. Proferiu ainda profecias, prevendo, entre outras coisas, o futuro da mulher cujo canto a havia colocado em transe. “Poucas foram as coisas, de tudo que ela dissera”, registrou um dos presentes, “que deixaram de acontecer”.
Devido a sua natureza aberta e comunitária, o Seidr diferenciava-se muito, sob um aspecto importante, dos fabulosos encontros noturnos atribuídos às bruxas. Mas até mesmo essas reuniões públicas em torno da magia certamente contribuíram para criar o folclore do Sabat. Tal como os primitivos povos Germânicos e Nórdicos, os Celtas possuíam suas próprias tradições de poderosas divindades femininas, cujas características ecoavam o que naquela época seria uma lembrança ainda recente da antiga Deusa-Mãe. A maioria dos rituais Celtas de culto às Deusas era pacífica. Em geral as cerimônias marcavam a passagem das estações, oferecendo às pessoas uma forma de buscar proteção sobrenatural para o gado e a colheita. As Deusas da mitologia Celta, contudo, também desempenhavam um papel fundamental em relação ao destino nas guerras. Instruíam os guerreiros locais quanto à arte do combate e empregavam seus poderes mágicos para auxiliar os exércitos.
Essas divindades coexistiram, no rico folclore das ilhas britânicas, com uma variedade extraordinária de demônios, ninfas e elfos. Nesse fantástico grupo de espíritos incluíam-se algumas das mais evocativas e nitidamente delineadas imagens daquilo que se tornaria o estereotipo moderno da feiticeira: uma megera maligna. Uma das histórias que contém essa figura é a lenda de Niall, o filho de Eochu Muigmedon, um antigo rei da Irlanda. Diz a lenda que Niall e seus quatro irmãos estavam caçando e, ao sentir sede procuraram saciá-la em um poço. Quando dele se aproximaram, uma velha horrenda saiu de dentro de seu esconderijo. “Era negra como o carvão” descreve o relato, “Seu cabelo parecia o rabo de um cavalo selvagem. Seus dentes podres iam de uma orelha a outra e eram tão grandes que com eles daria para serrar um galho de carvalho verde. Tinha olhos pretos sobre um enorme nariz torto, um corpo esquelético, manchado e doentio. As canelas eram tortas, os joelhos e tornozelos grossos, as unhas verdes”. Em troca de um gole de água daquele poço, essa figura repulsiva exigia um beijo de cada príncipe.
Naturalmente, os jovens relutaram em satisfazer sua vontade e somente Niall talvez pressentindo que havia magia em jogo, avançou um passo à frente e cuidadosamente ofereceu o beijo que lhe fora pedido. Tal como relata a História do sapo que se transformou em príncipe, que apareceria no folclore posterior a essa lenda, a megera monstruosa converteu-se em uma jovem de surpreendente beleza. Num ambiente onde predominava a crença na magia e em sua eficácia, e onde brotaram contos de fada como este, os Celtas não deixavam de usufruir dos benefícios da feitiçaria para marcar seus momentos mais significativos, tal como a coroação de um rei.
O processo de seleção de um monarca Celta incluía, em determinada época, um bizarro rito de fertilidade – o cruzamento do futuro governante com a Deusa regional, na forma de uma égua da mais pura alvura. Essa prática, um tanto bárbara, permaneceu até meados do século XII. Após esse ritual, segundo uma crônica contemporânea, a égua era imediatamente sacrificada, cortada em pedaços e cozida dentro de um enorme caldeirão. Em seguida, o governante escolhido entrava dentro daquela sopa e jantava a carne da égua ao mesmo tempo em que se banhava. A tradição determinava que ele lambesse aquele caldo como se fosse um animal, ao invés de toma-lo com a ajuda de um copo ou das próprias mãos. “Assim que essas iníquas exigências fossem devidamente cumpridas”, conclui o relato, “a autoridade e o poder reais estariam ratificados”. Com uma concepção mágica do mundo tão profundamente entrelaçada no tecido da sociedade, é pouco provável que os Celtas considerassem a bruxaria como ameaça.
Mas eles tampouco outorgavam impunidade à prática de malefícios. Prejudicar um indivíduo através de meios ocultos, era considerado como crime contra a pessoa ou seus semelhantes. Na 1nglaterra, os assassinos que estivessem sob suspeita de ter recorrido à feitiçaria eram entregues à família da vítima, para receber punição. O tratamento legal dado à feitiçaria era similar em toda Europa, especialmente nas terras germânicas, nas quais costumava permitir às vitimas de um malefício executar pessoalmente a punição. A saga irlandesa Egrbyggia, do séc. XII narra que uma viúva, cujos encantamentos teriam levado um jovem a adoecer gravemente, fora caçada e apedreja até a morte pelos familiares do rapaz.
Outra saga daquele mesmo período, Laxdaela, conta como um casal de bruxos teria causado com feitiços a morte de um garoto de 12 anos. Mais uma vez, a família da vitima capturou os criminosos e apedrejou-os até a morte. Contudo, já em 500 a.C. há registros de que os francosalios, habitantes da região que agora conhecemos como França, infligiam penas mais indulgentes. “Se uma bruxa destruir um homem e houver provas de tal feito”, decretava a Lex Salica, “ela deverá pagar à família da vítima uma multa de 200 shillings de ouro e uma soma menor caso a vitima apenas adoeça”. A condenação à morte, em geral na fogueira, só podia ser imposta se a bruxa confessasse sua culpa ou se fosse uma serva e não pudesse pagar a multa.
Ao mesmo tempo, a lei salia desencorajava acusações vãs contra vizinhos inocentes, pois decretava uma multa igualmente elevada para todos que ousassem chamar alguém de bruxo sem conseguir prova-lo. Nestes casos, o acusador era obrigado a pagar as custas do tribunal. Os lombardos do norte da Itália faziam advertências semelhantes contra a calunia. “Que ninguém se atreva a matar uma criada estrangeira ou escrava como se fosse uma strigae, pois tal coisa não é possível”, exortava a lei, “e que os cristãos não creiam que uma mulher pode devorar um homem vivo por dentro”. Infelizmente as atitudes mais moderadas e razoáveis não persistiam por muito tempo. Na Europa predominava uma visão mágica do mundo, tanto entre os pagãos como entre os cristãos. As mensagens da mitologia e do folclore não estavam apenas nas profundezas da psique humana; possuíam um significado real e imediato.
Também traduziam um equilíbrio delicado entre o amor e o ódio pela bruxa, figura de poder aparentemente imenso. E esse equilíbrio, ao que parece, sempre parecia prestes a pender para o lado do medo e do terror. As pessoas pensavam saber o que era uma feiticeira; na verdade, conheciam-na por mais de uma dúzia de nomes diferentes. Precisavam apenas de mais um pretexto para dar vazão a seus instintos e atacar a fonte de inquietude que a bruxa representava. Infelizmente, isso foi exatamente o que ocorreu quando o cristianismo reivindicou seus direitos de gerir tanto suas vidas como sua lealdade.
Paroquianos da respeitável igreja da rua Arlington, em Boston, viram a coisa ao longo dos anos. Afinal, é em seu altar que o evangelho único, e não tríplice, tem sido transmitido de geração em geração. Bem, numa crise agora remota, que o abolicionista William protestou contra os malefícios da escravatura. Em um século seria nessa mesma igreja que vários manifestantes externariam ser contra a intervenção americana no Vietnã. Contudo, é possível pensar que nem mesmo paroquianos com tanta audácia teriam sido capazes de prever a incrível cena que ocorreria numa sexta-feira de abril, no ano de 1976.
Naquela noite, quando já dormiam, o som cristalino de uma flauta se espalhou por entre as mulheres ali reunidas, quatro feiticeiras, cada uma delas em pé, colocaram-se ao redor do altar. Com elas encontrava-se uma da magia, Morgan McFarland, filha de um ministro protestante. Firme, McFarland proferiu um longo encantamento cujos sons pareciam realmente muito distintos da doutrina que os párocos estavam habituados a ouvir: “No momento infinito antes do in, a Deusa se levantou em meio ao caos e deu a luz a Si Mesma (…) qualquer nascimento (…) antes de seu próprio nascer. Nas Águas, e neles dançou, a Deusa, em Seu êxtase, criou tudo e movimentos geraram o vento, o elemento Ar nasceu e respirou”. Enquanto a alta sacerdotisa prosseguia em seu cântico, descrevendo a versão da criação do mundo, suas companheiras de altar começaram a acender as velas, uma após a outra – a primeira para o leste, depois sul, oeste e, por fim, para o norte. As palavras de MacFarland repetindo diante de todos como se fossem ditas pela voz de uma Deusa e, uma voz que invocava a grande divindade feminina que, segundo as sacerdotisas, havia criado os céus e a terra.
No ápice de seu transe rememorava o dia em que a Deusa criara a primeira mulher, os nomes que deveriam ser eternamente pronunciados em fá: “Sou Ártemis, a Donzela dos Animais, a Virgem dos Caçadores: Grande Mãe. Sou Ngame, a Deusa ancestral que sopra a mortalha, serei chamada por milhares de nomes. Invoquem a mim, minhas filhas, e saibam que sou Nêmesis”. Tudo isso ocorreu durante uma convenção de três dias, cujo tema era a espiritualidade feminina. Apesar de recorrer a elementos familiares tais como velas, túnicas e músicas, essa foi a prece menos ortodoxa que já ecoara pelas paredes de arenito da igreja da rua Arlington.
A cerimônia deve ter sido contagiante, pois no final a nave da igreja estava repleta de pessoas dançando e quase mil vozes preenchiam aquele local majestoso e antigo unidas em uma só cantilena que dizia: “A Deusa vive, há magia no ar. A Deusa vive, há magia no ar”. Para muitos especialistas que pesquisam a história da feitiçaria, aquela Deusa invocada durante a cerimônia, uma Deusa cuja dança arrebatada teria urdido o vento, o ar e o fogo e cujo riso, afirmava-se, instilara a vida em todas as mulheres, não poderia, de modo algum, ter existido no momento da criação, porque nasceu e recebeu sua aparência, tanto quanto sua personalidade, de uma imaginação absolutamente moderna.
Sua origem histórica, afirmam os céticos, limita-se a poucos traços colhidos de concepções um tanto nebulosas relacionadas com divindades da Europa pré-cristã, concepções estas que teriam sido intencionalmente rebuscadas com detalhes teatrais para adequar-se aos ritos e cerimônias. Porém, para muitos praticantes da feitiçaria, sua Grande Deusa é realmente um ancestral espírito criador cultuado na Europa e no Oriente muito antes da introdução do Deus cristão. Acreditam que a Deusa tenha sobrevivido aos séculos de perseguição ocultando-se nos corações de seus adoradores secretos, filhos e filhas espirituais que foram condenados ao ecúleo e à fogueira da Inquisição devido a suas crenças. E agora, dizem, a Deusa emerge mais uma vez, abertamente, inspirando celebrações nos redutos daquela mesma região organizada que anteriormente tentara expurgar tudo que estivesse relacionado com ela e seus seguidores. Seus modernos adeptos não têm a menor dúvida quanto a antiguidade de sua fé. Ser um feiticeiro, afirma um deles, é “entrar em profunda sintonia com coisas que são mais antigas que a própria espécie humana”.
E, realmente, certos iniciados declaram perceber nesse movimento dos praticantes de feitiçaria uma força invisível que anima o universo. Uma mulher que classificou os ensinamentos e ritos da feitiçaria como “meras palavras, sem qualquer significado”, disse, no entanto, que, quando compareceu ao local no qual as feiticeiras se reuniam, sentiu uma força que parecia pairar além dos limites da razão. “Sinto uma corrente”, confessou em carta a uma amiga, “uma força que nos cerca. Uma força viva, que pulsa, flui e reflui, cresce e desaparece como a lua (…) não sei o que é, e não sei como usá-la. É como quando se está bem perto de uma corrente elétrica, tão perto que se pode até ouvir seu zumbido, seu estalo, mas sem conseguir conecta-la”.
Hoje, contudo, milhares de homens e mulheres que levam uma vida comum, afora essa busca, acreditam estar conectando essa corrente e extraindo energia daquilo que Theodore Roszak define como “a fonte da consciência espiritual do homem”. No decorrer desse processo, estes que se proclamam neopagãos descobrem – ou, como dizem alguns deles, redescobrem – o que afirmam ser uma religião ancestral, uma religião cuja linguagem é a do mito e do ritual, cuja fé professa a realidade do êxtase e é difícil de ser definida, uma religião de muitas divindades e não de apenas um só Deus. Esses modernos adoradores da natureza, tal com os pagãos de eras passadas não separam o natural do sobrenatural, o ordinário do extraordinário, o mundano do espiritual. Para um neo-pagão, tudo pertence a um mesmo todo.
Calcula-se que os neopagãos alcancem um número aproximado de 100 mil ou mais adeptos nos Estados Unidos formando uma irmandade que se reflete na verdadeira explosão de festivais pagãos iniciada na década de 70. No final da década de 80, havia mais de cinquenta desses festivais nos Estados Unidos, atraindo uma plateia que reunia desde adeptos mais radicais até meros curiosos. Segundo Marc Adler, autora de Atraindo a Lua, um livro que documenta a ascensão do neopaganismo, tais festivais “mudaram completamente a face do movimento pagão” e estão gerando uma comunidade pagã nacional. Adler afirma que esse grupo abrange pessoas cujo perfil social inclui desde tatuadores, estivadores até banqueiros, advogados e muitos profissionais da área de informática. Nem todos os neopagãos da atualidade podem ser chamados de bruxos ou feiticeiros, pois nem sempre associam o neo-pagão à natureza e a antigas divindades com a prática da magia ritualística, como fazem os feiticeiros. Mas um número desconhecido de neopagãos adota os princípios de uma fé popularmente chamada de feitiçaria e conhecida entre os iniciados como prática.
Essa religião também é conhecida pelo nome de Wicca. Uma palavra do inglês antigo que designa “feiticeiro”; esse termo pode estar relacionado com as raízes indo-europeias das palavras wic e ueik, que significam “dobrar” ou “virar”. Portanto, aos olhos dos modernos adeptos da Wicca, as bruxas nunca foram as megeras ou mulheres fatais descritas pelo populacho, mas sim homens e mulheres capazes de “dobrar” a realidade através da prática da magia. Eles acreditam que os feiticeiros da história seriam os curandeiros das aldeias, senhores do folclore e da sabedoria tradicional e, portanto, os pilares da sociedade local.
Mas o estereótipo persiste, e as bruxas continuam a ser objeto de calúnia, lutando para desfazer a imagem de companheiras do diabo. Para muitos, a bruxa era, e ainda é, a adoradora do demônio. Bem recentemente, em 1952, o autor britânico Pennethorne Hughes classificou algumas feiticeiras da história como “lascivas e pervertidas”, atribuindo-lhes uma longa lista de pecados reais ou imaginários. “Elas faziam feitiços”, escreveu, “causavam prejuízos, envenenavam, provocavam abortos no gado e inibiam o nascimento de seres humanos, serviam ao diabo, parodiavam os rituais cristãos, aliavam-se aos inimigos do rei, copulavam com outros bruxos ou bruxas que chamavam de íncubos ou súcubos e cometiam abusos com animais domésticos.”
Diante de tantas acusações, não chega a ser surpreendente o fato de que as palavras “mago”, “feiticeiro” ou “bruxo” e “magia”, “feitiçaria”, ou “bruxaria” continuem a despertar profundas reações. “A feitiçaria é uma palavra que assusta a uns e confunde a outros”, observa uma escritora radicada na Califórnia, também praticante de feitiçaria, conhecida pelo nome de Starhawk. “Na mente do povo”, ela observa, as bruxas do passado são “megeras horrendas montadas em vassouras, ou maléficas satanistas que participavam de rituais obscenos”. E a opinião contemporânea não tem demonstrado bondade maior para com as feiticeiras atuais, considerando-as, como aponta Starhawk, “membros de um culto esquisito, que não tem a profundidade, dignidade ou seriedade de propósitos de uma verdadeira religião”.
Mas trata-se de fato de uma religião, tanto para quem a religião é “uma necessidade humana de beleza”, como no sentido que figura no dicionário: “sistema institucionalizado de atitudes, crenças e práticas religiosas”. Até mesmo o Departamento de Defesa dos Estados Unidos cedeu às reivindicações dos praticantes da Wicca para que esta fosse considerada como religião válida e, em meados da década de 70, o Pentágono recrutou uma feiticeira, Lady Theos, para revisar o capítulo referente à bruxaria no Manual dos Capelães do exército.
As contribuições de Lady Theos foram atualizadas em 1985, por uma erudita neo-pagã chamada Selena Fox. Outro sinal dos tempos pode ser visto nos cartões de identidade dos membros das forças armadas, nas quais as palavras “pagão” e “wiccan” agora aparecem com frequência, embora certamente em menor número, do que os nomes de outras afiliações religiosas. Apesar desse reconhecimento e embora a Constituição americana – tal como a brasileira – garanta o direito à liberdade de crença, a prática de feitiçaria ainda enfrenta duras criticas e até mesmo uma perseguição premeditada. Esses ataques naturalmente não se comparam, em escala e em violência, com o prolongado reinado de horror que predominou do século XIV ao XVII, período descrito pelas feiticeiras contemporâneas como “época das fogueiras”, ou “a grande caçada às bruxas”. De fato, a perseguição atual é comparativamente até benigna – demissão de empregos, perda da custodia dos filhos, prisão por infração aos bons costumes –, mas causa prejuízos que levaram a sacerdotisa da ordem Wicca, Norgan McFarland, a rotular estes tempos como “a era das fogueiras brandas”.
Pelo menos em parte, a fonte da relativa tolerância atual, bem como as raízes desse renascimento da Wicca, podem ser encontradas nos trabalhos elaborados no início do século XX pela antropóloga inglesa Margaret Murray. As pesquisas de Murray sobre as origens e a história da feitiçaria começaram, como ela posteriormente registrou em sua autobiografia, com “a idéia comum de que todas as feiticeiras eram velhas padecendo de alucinações por causa do diabo”.
Mas ao examinar os registros dos julgamentos que restaram da Inquisição, Murray logo desmascarou o diabo, segundo suas próprias palavras, e descobriu em seu lugar algo que identificou como o Deus Chifrudo de um culto à fertilidade, uma divindade pagã que os inquisidores, em busca de heresias religiosas, transformaram em uma incorporação do diabo. À medida que aprofundou o estudo daqueles registros ela se convenceu de que esse Deus possuía um equivalente feminino, uma versão medieval da divina caçadora das épocas clássicas, que os gregos chamavam de Ártemis e os romanos de Diana. Ela supunha que as feiticeiras condenadas reverenciavam Diana como líder espiritual. Na visão de Murray, a feitiçaria seria o mesmo culto à fertilidade anterior ao cristianismo, que ela denominou “Culto à Diana”, e seria “a antiga religião da Europa ocidental”.
Vestígios dessa fé, segundo ela, poderiam ser rastreados no passado a até cerca de 25 mil anos, época em que viveu uma raça aborígine composta de anões, cuja existência permaneceu registrada pelos conquistadores que invadiram aquelas terras apenas nas lendas e superstições sobre elfos e fadas. Seria uma “religião alegre”, como a descreve Murray, repleta de festejos, danças e abandono sexual e incompreensível para os sombrios inquisidores, cujo único recurso foi destrui-la até as mais tenras raízes. Em 1921, Murray divulgou suas conclusões em O Culto à Feiticeira na Europa Ocidental, o primeiro dos três livros que ela publicaria sobre o assunto, em um trabalho que outorgaria certa legitimidade à religião Wicca.
Outros estudiosos, contudo, imediatamente atacaram tanto os métodos utilizados por Murray como suas conclusões. Um crítico simplesmente classificou seu livro como “um palavrório enfadonho”. Embora o trabalho de Margareth Murray nunca tenha desfrutado de muito prestígio nos círculos acadêmicos, recentes estudos arqueológicos induziram alguns historiadores a fazer ao menos uma releitura mais criteriosa de algumas de suas teorias mais polemicas. Mesmo que a seu modo, Murray realmente conseguiu, através de uma reavaliação favorável da feitiçaria, abrir uma porta para um fluxo de interesse pelo culto à Diana.
Aqueles que acataram a liderança de Murray e se aventuraram a penetrar por aquela porta logo descobriram que estavam também na trilha de um escritor e folclorista americano chamado Charles Leland. Em 1899, mais de duas décadas antes de Murray apresentar suas teorias, Leland havia publicado Aradia, obra que ele descreveu como o Evangelho de La Vecchia Religione, uma expressão que desde então passou a fazer parte do saber “Wicca”. Ao apresentar a tradução do manual secreto de mitos e encantamentos de um feiticeiro italiano, o livro relata a lenda de Diana, Rainha das Feiticeiras, cujo encontro com o Deus-Sol Lúcifer resultara numa filha chamada Aradia. Esta seria la prima strega, “a primeira bruxa”, a que revelara os segredos da feitiçaria para a humanidade. Aradia é no mínimo uma fonte duvidosa e provavelmente uma fraude cabal; contudo, terminou servindo de inspiração para inúmeros ritos praticados por feiticeiros contemporâneos, inclusive para a Exortação à Deusa, que convoca seus ouvintes a “reunir-se em lugares secretos para adorar Meu Espírito, a Mim que sou a Rainha de todas as Feiticeiras”.
Embora a obra conte com poucos, ou raros, defensores no círculo acadêmico, em oposição aos que lhe lançam duras críticas, Aradia de certo modo reacendeu as chamas desse renascimento da feitiçaria, e sua ênfase no culto à Deusa tornou o livro muito popular nas assembleias feministas. Um trabalho mais recente com enfoque similar, porém de reputação mais sólida, é o livro de Robert Graves, A Deusa Branca, publicado pela primeira vez em 1948. Em estilo lírico, Graves apresenta argumentos que revelam a existência de um culto ancestral centrado na figura de uma matriarcal Deusa lunar.
Essa Deusa seria a única salvação para a civilização ocidental, substituta da musa inspiradora de toda criação poética. Mas, se por um lado muitos entre os primeiros leitores encontraram nesse livro fundamentos para a prática de feitiçaria e se mais tarde ele continuou a inspirar os seguidores da Wicca, o próprio Graves expressou profundas reservas com relação à bruxaria. Sua ambivalência torna-se aparente num ensaio de 1964, no qual o autor sublinha a longevidade e a força da religião Wicca, mas também faz críticas ao que ele considera uma ênfase em jogos e brincadeiras.
O “ideal para a feitiçaria”, escreve Graves, seria que “surgisse um místico de grande força para revestir de seriedade essa prática, recuperando sua busca original de sabedoria”. A referência de Graves era uma irônica alfinetada em Gerald Brosseau Gardner, um senhor inglês peculiar e carismático, que exerceria profunda – embora frívola, do ponto de vista de Graves – influência no ressurgimento do interesse pela feitiçaria. Gardner, que nascera em 1884 próximo de Liverpool, tivera diversas carreiras e ocupações: funcionário de alfândega, plantador de seringueiras, antropólogo e, finalmente, místico declarado. Pouco afeito às convenções, era um nudista convicto, professando um perpétuo interesse pela “magia e assuntos do gênero”, campo que para ele incluía tudo: desde os pequenos seres das lendas inglesas até as vítimas da Inquisição e os cultos secretos da antiga Grécia, Roma e Egito.
Pertenceu, durante certo tempo, à famosa sociedade dos aprendizes de magos chamada Ordem Hermética da Aurora Dourada. Gerald Gardner enfureceu os círculos acadêmicos quando anunciou que as teorias de Margaret Murray eram verdadeiras. “A feitiçaria”, declarou, “havia sido uma religião e continuava a ser”. Ele dizia saber isso simplesmente porque ele próprio era um bruxo. Seu surpreendente depoimento veio à luz em 1954, com o lançamento de A Feitiçaria Moderna, o livro mais importante para o renascimento da feitiçaria. Sua publicação teria sido impossível antes de 1951, ano no qual os frágeis decretos de 1753 contra a feitiçaria foram finalmente revogados pelo Parlamento britânico. Curiosamente, o Parlamento rescindiu esses decretos cedendo às pressões das igrejas espíritas, cujas tentativas de contato com as almas dos que já se foram também haviam sido reprimidas pela lei.
A revogação contou com pouquíssimos oponentes, porque os legisladores imaginavam que certamente após mais de três séculos de perseguição e 200 anos de silêncio, a feitiçaria era assunto morto e enterrado. Se a prática não havia desaparecido, como A Feitiçaria Moderna tentava provar, o próprio Gardner admitiu ao menos que a feitiçaria estava morrendo quando ele a encontrou pela primeira vez, em 1939. Gardner gerou muita polêmica ao afirmar que, após a catastrófica perseguição medieval, a bruxaria tinha sobrevivido através dos séculos, secretamente, à medida que seu saber canônico e seus rituais eram transmitidos de uma geração para outra de feiticeiros. Segundo Gardner, sua atração pelo ocultismo havia feito com que se encontrasse com uma herdeira da antiga tradição, “a Velha Dorothy” Clutterbuck, que supostamente seria alta sacerdotisa de uma seita sobrevivente.
Logo apos esse encontro, Gardner foi iniciado na prática, embora mais tarde tenha afirmado, no trecho mais improvável de uma história inconsistente, que desconhecia as intenções da velha Dorothy até chegar ao meio da cerimônia iniciática, ouvir a palavra “Wicca” e perceber “que a bruxa que eu pensei que morrera queimada ha centenas de anos ainda vivia”. Considerando-se devidamente preparado para tal função, Gardner assumiu o papel de porta-voz informal da prática. Assim, lançou uma nova luz nas atividades então secretas da bruxaria ao descrever em seu livro, por exemplo, a suposta atuação desses adeptos para impedir a invasão de Hitler na Inglaterra.
De acordo com Gardner, os feiticeiros da Grã-Bretanha reuniram-se na costa inglesa em 1940 e juntos produziram “a marca das chamas” – uma intensa concentração de energia espiritual, também conhecida como “cone do poder”, para supostamente enviar uma mensagem mental ao Fuhrer: “Você não pode vir. Você não pode cruzar o mar”. Não se pode afirmar se o encantamento produziu ou não o efeito desejado, mas, como Gardner salientou prontamente, a História realmente registra o fato de Hitler ter reconsiderado seu plano de invadir a Inglaterra na ultima hora, voltando-se para a Rússia.
Gardner declara que esse mesmo encantamento teria, aparentemente, causado o desmoronamento da Armada Espanhola em 1588, quando muitos feiticeiros conjuraram uma tempestade que tragou a maior frota marítima daquela época. Quando não reescrevia a história, Gerald Gardner assumia a tarefa de fazer uma revisão da feitiçaria. Partindo de suas próprias extensas pesquisas sobre magia ritual, ele criou uma “sopa” literária sobre feitiçaria feita com ingredientes que incluíam fragmentos de antigos rituais supostamente preservados por seus companheiros, adeptos da prática, além de elementos de ritos maçônicos e citações de seu colega Aleister Crowley, renomado ocultista que se declarava a Grande Besta da magia ritual. Gardner decidiu então acrescentar uma pitada de Aradia e da Deusa Branca e, para ficar no ponto, temperou seu trabalho incorporando-lhe um pouquinho de Ovídio e de Rudyard Kipling. O resultado final, escrito numa imitação de inglês elisabetano, engrossado ainda com pretensas 162 leis de feitiçaria, foi uma espécie de catecismo da Wicca, ressuscitado por Gardner. Assim que completou o trabalho, seu compilador tentou faze-lo passar por um manual de uma bruxa do século XVI, ou um Livro das Sombras.
Apesar dessa origem duvidosa, o volume transformou-se em evangelho e liturgia da tradição gardneriana da Wicca, como veio a ser chamada essa última encarnação da feitiçaria. Era uma “pacífica e feliz religião da natureza”, nas palavras de Margot Adler em Atraindo a Lua, “As bruxas reuniam-se em assembleias. Adoravam duas divindades em especial, o Deus das florestas e de tudo que elas encerram, e a grande Deusa tríplice da fertilidade e do renascimento. Nuas, as feiticeiras formavam um círculo e produziam energia com seus corpos através da dança, do canto e de técnicas de meditação. Concentravam-se na Deusa; celebravam os oito festivais pagãos da Europa, buscando entrar em sintonia com a natureza.” Como indaga o próprio Gardner em seu livro, “Há algo de errado ou pernicioso nisso tudo? Se praticassem esses ritos dentro de uma igreja, omitindo o nome da Deusa ou substituindo-o pelo de uma santa, será que alguém se oporia?”. Talvez não, embora a nudez ritualística recomendada por Gardner causasse, e ainda cause, um certo espanto.
Mas para Gardner as roupas simplesmente impedem a liberação da força psíquica que ele acreditava existir no corpo humano. Ao se desnudarem para adorar a Deusa, as feiticeiras não só se despiam de seus trajes habituais, como também de sua vida cotidiana. Além disso, sua nudez representaria um regresso simbólico a uma era anterior a perda da inocência. Gardner justifica a nudez ritualística em sua adaptação da Exortação a Deusa, de Aradia, na qual a Prima Strega recomenda a suas seguidoras: “Como sinal de que sois verdadeiramente livres, deveis estar nuas em seus ritos; cantai, celebrai, fazendo música e amor, tudo em meu louvor”.
A recomendação da nudez, acrescentada à defesa feita por Gardner do sexo ritualístico – o Grande Rito, como ele o chamava –, virtualmente pedia críticas. Rapidamente o pai da tradição gardneriana ganharia reputação de velho obsceno. Mas, sendo um nudista e ocultista vitalício, Gardner estava habituado aos olhares reprovadores da sociedade e em seu livro A Feitiçaria Moderna, parecia antever as criticas que posteriormente receberia. Contudo, angariou pouquíssima simpatia entre seus detratores ao optar por caracterizar a nudez ritualística como “um grupo familiar tentando fazer uma experiência científica de acordo com o texto do livro”.
Pior ainda, alguns de seus críticos pensaram ter sentido um cheiro de fraude após o exame minucioso de seus trabalhos, começando então a questionar a validade do supostamente antiqüíssimo Livro das Sombras, bem como de sua crença numa tradição ininterrupta de prática da feitiçaria. Entre seus críticos mais ferrenhos encontrava-se o historiador Elliot Rose, que em 1962 desacreditou a feitiçaria de Gardner, afirmando que era um sincretismo, e aconselhando ironicamente aqueles que buscassem alguma profundidade mística na prática da bruxaria que escolhessem uns dez “amigos alucinados” e formassem sua própria assembleia de bruxos. “Será um grupo tão tradicional, bem instruído e autêntico quanto qualquer outro desses últimos milênios, observava Rose acidamente.
Mesmo após 1964, quando Gerald Gardner foi confinado em segurança dentro de seu túmulo. Francis King, um destacado cronista britânico do ocultismo, acusou Gardner de fundar “um culto às bruxas elaborado e escrito em estilo romântico, um culto redigido de seu próprio punho”, um pouco para escapar do tédio. King chegou até a declarar que Gardner contratara seu amigo, o mágico Aleister Crowley, para que este lhe redigisse uma nova liturgia. Aidan Kelly e outro crítico, o fundador da Nova Ordem Ortodoxa Reformada da Aurora Dourada, uma ramificação da prática da magia.
Kelly declarou trivialmente que Gardner inventara a feitiçaria moderna e que ele, em sua tentativa desorientada de reformar a velha religião, formara outra, inteiramente nova. Segundo Kelly, a primazia da Deusa, a elevação da mulher ao status de alta sacerdotisa, o uso do círculo para concentração de energia e até mesmo o ritual para atrair a lua, no qual uma alta sacerdotisa transforma temporariamente em Deusa eram contribuições de Gardner à prática. Além disso, em 1984, Kelly assegurou a um jornal pagão que não há base alguma para a declaração de Gardner segundo o qual sua tradição de feitiçaria teria raízes no antigo paganismo europeu. No mesmo artigo, Kelly forneceu detalhes acerca das origens do polêmico Livro das Sombras de Gardner.
O trabalho não teria sido iniciado, desconfiava Kelly, no século X como Gardner afirmava, mas sim nos primórdios da Segunda Guerra Mundial. Gardner teria começado a registrar em um livro de anotações vários rituais que havia pilhado de outras tradições ocultistas, bem como passagens favoritas dos textos que lia. Quando encheu o primeiro livro de anotações, segundo Kelly, Gardner considerou que tinha em mãos a receita do primeiro Livro das Sombras. Kelly também chamou atenção para uma profunda revisão daquilo que se tornara a “tradição” Gardner, demonstrando que não se tratava da continuidade de uma religião cujas raízes remontavam a milênios, mas sim uma invenção recente e, como tal, um tanto inconsistente.
Em seus primeiros anos, a Wicca de Gardner estivera centralizada no culto ao equivalente masculino do Deus principal, registrava Kelly. Por volta da década de 50, contudo, o Deus Chifrudo fora eclipsado pela Grande Deusa. Uma mudança equivale havia ocorrido na própria prática das assembleias, durante quais o alto sacerdote fora subitamente relegado a seguir o plano, substituído por uma alta sacerdotisa. Como Kelly mostrou, essas mudanças só aconteceram depois que Valiente, a primeira alta sacerdotisa da linha de Gardner começou a adotar o mito da Deusa Branca como sistema oficial de crenças. Na verdade, Valiente é a verdadeira mentora da grande maioria dos rituais gardnerianos.
Kelly, no entanto, contrabalançou suas virulentas críticas a Gardner ao creditar-lhe não só uma criatividade genial, mas também a responsabilidade pela vitalidade da feitiçaria contemporânea. O mesmo fez J. Gordon Helton, um ministro metodista e fundador do Instituto para o Estudo da Religião Americana. Numa entrevista recente, comentou que todo o movimento neo-pagão deve seu surgimento, bem como seu ímpeto, a Gerald Gardner. “Tudo aquilo que chamamos hoje de movimento da feitiçaria moderna”, declarou Helton, “pode ser datada a partir de Gardner”.
Dúvidas e polêmicas sobre suas fontes à parte, a influência de Gerald Gardner no moderno processo de renascimento da Wicca é indiscutível, assim como seu papel de pai espiritual dessa tradição específica de feitiçaria que hoje carrega seu nome. Embora os métodos de Gardner revelassem um certo tique de charlatania e seus motivos talvez parecessem um tanto confuso, sua mensagem era apropriada para sua época e recebida com entusiasmo dos dois lados do Atlântico. Quer ele tenha ou não redescoberto e resgatado um antigo caminho da sabedoria, aparentemente seus seguidores foram capazes de captar em seu trabalho uma fonte para uma prática espiritual que lhes traz satisfação.
Além do mais, na condição de alto sacerdote de seu grupo, Gerald Gardner foi pessoalmente responsável pela iniciação de dúzias de novos feiticeiros e pela criação de muitas novas assembleias de bruxos. Estas, por sua vez, geraram outros grupos, num processo que se tornou conhecido como “a colmeia” e que, de fato, resultou numa espécie de sucessão apostólica cujas origens remontam ao grupo original criado por Gardner. Outras assembleias gardnerianas nasceram a partir de feiticeiras autodidatas, que formaram seus próprios grupos após ler as obras de Gardner, adotando sua filosofia.
Contudo, nem todas as feiticeiras estão vinculadas ao gardnerianismo. Muitas professam uma herança anterior a Gardner e desempenham seus rituais de acordo com diversos modelos escolhidos das tradições Celta, escandinava e alemã. Além disso, alguns desses pretensos tradicionalistas declaram-se feiticeiros hereditários, nascidos em famílias de bruxos e destinados a transmitir seus segredos aos próprios filhos.
Zsuzsan suzsanna – ou Z – Budapest é uma famosa feiticeira feminista e alta sacerdotisa da Assembleia Número Um de Feiticeiros de Susan B. Anthony, nome atribuído em homenagem à famosa advogada americana, defensora dos direitos da mulher. Z Budapest afirma que a origem de seu conhecimento remonta à sua pátria, a Hungria, e ao ano de 1270. Nos diz ter sido educada acreditando que a raça da feitiçaria era apenas uma prática, e não uma religião, cujos fundamentos lhe foram transmitidos pela própria mãe, uma artista que previa o futuro e supostamente usava seus poderes mágicos para acalmar os ventos. Somente muitos anos depois, quando migrou para os Estados Unidos, Z teria descoberto os trabalhos de escritores como Robert Graves e Esther Harding, e passou a reconhecer-se como a praticante de Wicca que era na realidade.
Outras feiticeiras que também se declaram herdeiras de uma tradição descrevem experiências semelhantes às de Z. Budapest. Contam que, para elas, a prática era um assunto de família até lerem, acidentalmente, a literatura sobre a Wicca – geralmente livros escritos por Gerald Gardner, ou Margaret Murray, ou por autores contemporâneos como Starhawk, Janet e Stewart Farrar, ou Margot Adler. Só então teriam compreendido que pertenciam a um universo mais amplo. Lady Cibele, por exemplo, uma bruxa de Wisconsin, afirma que cresceu acreditando que a prática se limitava ao círculo de seus fami1iares. “Foi só na universidade que descobri que havia mais pessoas envolvidas com a prática”, confessou a Margot Adler, “e eu não sabia que éramos muitos até 1964, quando meu marido veio correndo para casa, da biblioteca onde trabalhava, murmurando muito animado que ‘Tem mais gente como nós no mundo!’”. O marido de Lady Cibele havia encontrado A Feitiçaria Moderna e, quando leram o livro juntos, emocionaram-se com a sensação de fami1iaridade que sentiram pelas ideias e práticas descritas por Gerald Gardner.
Mesmo que todos esses depoimentos sejam verdadeiros, o nascimento no seio de uma família de feiticeiros não representaria uma garantia de que uma criança em especial se tornaria posteriormente especialista nos segredos da prática. Em alguns casos o dom pula uma geração, na maioria das vezes porque um feiticeiro decide que nenhum de seus próprios filhos possui o temperamento adequado para iniciar-se na prática. O resultado é que a Wicca geralmente se vincula às tais “Histórias da vovó”, nas quais, como aponta J. Gordon Nelton, “aparece alguém que diz: fui iniciado por minha avó que era bruxa, descendente de uma linhagem ancestral”. Pouquíssimas histórias dessa natureza sobrevivem a um exame minucioso e muitas parecem até ridículas. Os próprios praticantes da Wicca sentem-se um tanto constrangidos com a proliferação de histórias da vovó. “Depois de algum tempo”, comentou um sacerdote Wicca, “você percebe que, se ouviu uma história de avó, já ouviu todas. Você percebe que o além deve estar lotado de vovozinhas assim”.
Entre as “histórias da vovó” mais interessantes está a que foi contada pelo suposto Rei das Feiticeiras, Alexander Sanders, que declarou ter sido iniciado na prática por sua avó, em meados de 1933, com apenas 7 anos de idade. Mas os céticos rapidamente salientam o fato de que a linha de feitiçaria de Sanders, conhecida como Tradição Alexandrina, guarda profunda semelhança com a de Gardner. De fato, muitos dos rituais de Sanders são virtualmente idênticos aos de Gardner e isto levou alguns observadores a desprezar essa tradição, considerando-a como uma simples variante, e não um legado deixado por uma avó misteriosa e convenientemente falecida. Muitos desses mesmos céticos encararam com igual desconfiança a história da famosa feiticeira inglesa Sybil Leek, que também afirmava ter se iniciado na prática ainda no colo da avó.
Na opinião de Melton, Leek, como Sanders, simplesmente exagerou alguns acontecimentos de sua infância. No entanto, os ataques dos incrédulos pouco fizeram para diminuir a enorme popularidade da feiticeira-escritora e na época de sua morte, em 1983, Sybil Leek era uma das bruxas mais famosas dos dois lados do Atlântico. Leek era uma autora prolífica, e durante sua vida produziu mais de sessenta livros que espalharam pelo mundo o evangelho da fé Wicca – e, não por acaso, sua própria fama.
Porém, ainda mais do que os livros de Leek, o que levou a Wicca da Inglaterra para os Estados Unidos foi a própria tradição de Gardner, que cruzou o Atlântico em 1964 como parte da bagagem espiritual de dois expatriados britânicos. Raymond e Rosemary Buckland já estavam prontos para passar dois anos em Long Island, Nova York, quando, movidos pelo interesse por ocultismo, decidiram escrever a Gardner em sua casa em Isle of Man. Tal correspondência resultaria posteriormente em um encontro e um curso rápido de feitiçaria na casa de Gardner. Nesse breve período o casal Buckland foi sagrado respectivamente sacerdote e sacerdotisa gardnerianos. Foram uns dos últimos feiticeiros iniciados e ungidos pessoalmente por Gardner antes de sua morte.
Assim que regressaram ao lar nova-iorquino, os Bucklands rapidamente puseram em prática tudo que haviam aprendido. Formaram a primeira assembleia gardneriana nos Estados Unidos e esta por sua vez, com o passar do tempo, gerou vários outros grupos. Esses grupos propagaram o evangelho gardneriano de uma costa a outra, tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá. Durante certo tempo, Rosemary Buckland ou Lady Rowen, como era conhecida entre os praticantes Wicca, foi coroada a rainha das feiticeiras pelos grupos os quais dera origem. Enquanto isso, Ray Buckland, ou Rol nome que havia adotado, seguindo o exemplo de Gerald Gardner, seu mentor, publicou o primeiro de uma série de livros que produziria sobre feitiçaria. Seus trabalhos fizeram com que a prática se tornasse acessível para muitos aspirantes a iniciar especialmente em seu novo lar, onde o interesse pela Wicca floresceu na atmosfera tolerante do final da década de 60 e início dos anos 70.
No mesmo período em que Ray e Rosemary Buckland se dedicaram a propagar esse renascimento da feitiçaria na América do Norte, o ocultismo começou a se transformar em algo que a antropóloga cultural Tanya M. Luhrmann descreveu como “uma contracultura sofisticada”. Em seu livro Atratiuos da Feil Qaria, publicado em 1989, Luhrmann apresenta uma teoria segundo a qual “a contracultura da década de 60 voltou-se para o ocultismo – astrologia, tarô, medicina e alimentação alternativa – porque eram alternativas para a cultura estabelecida. Muitos descobriram as cartas do tarô ao mesmo tempo que descobriram o broto de feijão”. Ray Buckland recorda esse período como uma época excitante, durante a qual veio a luz um número crescente de assembleias de bruxos, bem como as mais diversas expressões à crença Wicca. Feiticeiras detentoras de estilos altamente personalizados eram estimuladas pela permissividade daqueles dias, sentindo-se finalmente livres para expor-se. Ao mesmo tempo, a tradição gardneriana frutificava, espalhando as sementes de novas assembleias e gerando dissidências em todas as direções.
Certos grupos, tais como os que professavam a tradição de Alexandria e ainda um híbrido mais recente chamado de tradição de Algard, eram crias perfeitas do grupo anterior, isto é, assemelhavam-se aos progenitores gardnerianos em tudo, menos no nome. Outros eram parentes mais afastados, baseando-se nos ensinamentos de Gerald Gardner, mas acrescentando ideias novas. Entre estes figuram a Nova Wicca de Illinois, a Wicca Georgiana sediada na Califórnia e a Wicca de Maidenhill, da Filadélfia. Outras, tais como a igreja de Y Tylwyth Teg, a Pecti-Wita, e o Caminho do Norte, inspiram-se no passado mágico das lendas Celtas, Escocesas e Nórdicas.
As variações da Wicca não terminam por aqui: na verdade, elas apresentam uma diversidade que reflete a natureza individualista da prática da feitiçaria. A Wicca é tão aberta quanto eclética. “Todos nos conectamos com o Divino de maneiras diferentes”, afirma Selena Fox, fundadora de uma tradição própria. “Muitos caminhos levam à verdade”. De fato, o próprio grupo de Fox, o Santuário do Círculo, reconhecido como uma igreja Wicca pelo governo federal, estadual e local, tenta fornecer um substrato comum a todos esses caminhos.
O Santuário do Círculo define-se como um serviço de troca e intercâmbio internacional para praticantes de diferentes estirpes de Wicca. Muitas feministas, no entanto, envolveram-se em algum dos inúmeros cultos a Diana que proliferaram na década de 70. Essas assembleias assumiram seu nome a partir do culto a Diana, com base na concepção de Margaret Murray, e enfatizam em suas práticas a veneração à Deusa. Há até mesmo um curso por correspondência para aspirantes à Wicca que já conseguiu atrair aproximadamente 40 mil alunos. Mas essa onda de bruxos autodidatas passou a preocupar alguns dos antigos adeptos da Wicca, inclusive Ray Buckland, que certa vez lamentou o advento dessa religião “feita em casa”.
Em 1973, contrariado com algo que ele considerava como a corrupção da feitiçaria, Buckland rompeu seus vínculos com o gardnerianismo e criou um novo conjunto de práticas, retomando a tradição da Seax-Wicca, ou Wicca Saxã. Ao fazer isso, produziu também sua própria versão de uma feitiçaria autodidata e em sua obra A Árvore, seu primeiro produto na linha Seax-Wicca, incluía instruções detalhadas que permitiam a qualquer leitor “iniciar-se como feiticeiro e gerar sua própria Assembleia”.
Com o anúncio aparentemente contraditório de uma “nova tradição” espalhando-se aos quatro ventos, a Wicca ingressava numa fase de contendas entre os novos e os antigos. Ao romper com a tradição gardneriana, Ray Buckland tentava distanciar-se das querelas. “Enquanto os outros brigam para definir qual seria a mais antiga das tradições”, anunciou orgulhosamente, “declaro pertencer a mais jovem de todas elas!”. Isso ocorreu em 1973. Depois, surgiu assembléias e correntes da Wicca nas quais a novidade do dia às vezes confere uma importância passageira. Além disso, essa abundância de ritos e nomes transformou a própria Wicca numa fé um tanto difícil de ser definida. Até agora foram inúteis as tentativas de formular um aceitável por todos que se proclamam seguidores da Wicca apesar da necessidade profunda de seus seguidores no sentido de tornar público um conjunto de crenças que os distinga inicialmente dos satanistas.
Em 1974, o Conselho dos Feiticeiros Americanos, um grupo de representantes Wicca, formulou um documento que se intitulava corajosamente “Princípios da Crença Wicca”. Porém, assim que ratificaram o documento, o conselho que o produzira se desfez devido desavenças entre seus membros, pondo fim a esse breve consenso. No ano seguinte, uma nova associação, que hoje engloba cerca de setenta grupos de seguidores da Wicca, ratificou o Pacto da Deusa, um decreto mais duradouro propositalmente redigido nos moldes do documento da igreja Congregacion. Embora o pacto incluísse um código de ética e garantisse a autonomia das assembleias signatárias, está longe de definir o que seria a Wicca. “Não poderíamos definir com palavras o que é Wicca”, admite o pacto, “porque existem muitas diferenças.” Muitos bruxos alegam que essas diferenças apenas fazem aumentar os atrativos da Wicca. De fato, mesmo no seio uma tradição específica, distintos grupos podem ater-se a regras contrastantes e praticar rituais dessemelhantes. Essa situação é satisfatória para a maioria dos feiticeiros, que não veem por que a Wicca deveria ser menos diversificada do que as primeiras denominações cristas. Porém, até mesmo na ausência de um credo oficial, um grande número de feiticeiros acata um pretenso conselho, ou da Wicca: “Não prejudicarás a terceiros”.
Não se sabe ao certo, mas aparentemente essa adaptação 1ivre da regra de ouro do cristianismo tem vigorado pelo menos desde a época de Gardner. Nas palavras do Manual dos Capelães do Exército Estados Unidos, a lei da Wicca geralmente é interpretada como se dissesse que o praticante pode fazer o que bem desejar (As suas capacidades psíquicas desenvolvidas na prática da feitiçaria, contanto que jamais prejudique alguém com seus poderes). Como mais uma medida de precaução contra o mau uso desses poderes mágicos, a maioria das assembleias também apela para uma lei chamada “lei do triplo”, que consiste em uma outra máxima antiga. O provérbio adverte os bruxos, prevenindo: “Todo bem que fizerdes, a vós retornará três vezes maior; todo mal que fizerdes, também a vós regressará três vezes maior”.
Dada a dificuldade em classificar a feitiçaria, ou estabelecer uma lista concisa com as crenças comuns a todos os adeptos da Wicca, uma descrição completa das características de um bruxo moderno necessariamente é apenas aproximativa. Todavia, pode-se afirmar com segurança que a maioria dos feiticeiros acredita na reencarnação, reverencia a natureza, venera uma divindade onipresente e multifacetada e incorpora a magia ritualística em seu culto a essa divindade. Além disso, poucos feiticeiros questionariam os preceitos básicos resumidos por Margot Adler em Atraindo a Lua. “A palavra é sagrada”, ela escreveu. “A natureza é sagrada. O corpo é sagrado. A sexualidade é sagrada. A mente é sagrada. A imaginação é sagrada. Você é sagrado. Um caminho espiritual que não estiver estagnado termina conduzindo à compreensão da própria natureza divina. Você é Deusa. Você é Deus. A divindade está (…) tanto dentro como fora de você”.
Três pressupostos filosóficos fundamentam essas crenças e estes, mais do que quaisquer outras características vinculam a feitiçaria moderna e o neopaganismo às práticas correspondentes do mundo antigo. O primeiro pressuposto é o animismo, ou a ideia de que objetos supostamente inanimados, tais como rochas ou árvores, estão imbuídos de uma espiritualidade própria. Um segundo traço comum é o panteísmo, segundo o qual a divindade é parte essencial da natureza. E a terceira característica é o politeísmo, ou a convicção de que a divindade é ao mesmo tempo múltipla e diversificada.
Juntas, essas crenças compreendem uma concepção geral do divino que permeou o mundo pré-cristão. Nas palavras do historiador Arnold Toynbee, “a divindade era inerente a todos os fenômenos naturais, inclusive aqueles que o homem domara e domesticara. A divindade estava presente nas fontes, nos rios e nos mares; nas árvores, tanto no carvalho de uma mata silvestre como na oliveira cultivada em uma plantação; no milho e nos vinhedos; nas montanhas; nos terremotos, no trovão e nos raios”.
A presença de Deus ou da divindade era sentida em todos os lugares, em todas as coisas; ela seria “plural, não singular; um panteon, e não um único ser sobre-humano e todo-poderoso”. A escritora e bruxa Starhawk reproduziu em grande parte o mesmo tema ao observar que a bruxaria “não se baseia em um dogma ou conjunto de crenças, nem em escrituras, ou em algum 1ivro sagrado revelado por um grande homem. A feitiçaria retira seus ensinamentos da própria natureza e inspira-se nos movimentos do sol, da lua e das estrelas, no voo dos pássaros, no lento crescimento das árvores e no ciclo das estações”.
Mas Starhawk também reconhece que o aspecto politeísta da Wicca – o culto à “Deusa Tríplice, do nascimento, do amor da morte e a seu consorte, o Caçador, que é o “Senhor da Dança da Vida” – constitui a grande diferença entre a feitiçaria moderna e as principais religiões ocidentais. Mesmo assim, muitos adeptos da Wicca discordam quanto ao fato de seu Deus / Deusa serem meros símbolos, entidades verdadeiras ou poderosas imagens primarias – aquilo que Carl Jung alcunhou de arquétipo –, profundamente arraigadas no subconsciente humano. Os feiticeiros também divergem quanto aos nomes de suas divindades. Como se expressa no cântico da alta sacerdotisa Morgan McFarland na igreja da rua Arlington, são inúmeros os nomes para o Deus e a Deusa.
Abrangem desde Cernudo, Pã e Herne no lado masculino da divindade, a Cerridwen, Arianrhod e Diana, no aspecto feminino. Na verdade, há tantos nomes diferentes provenientes de tantas culturas e tradições que McFarland não se afastava da verdade quando dizia à sua platéia que a Deusa “será chamada por milhares de nomes”. Seja qual for seu nome, a Deusa, na maioria das seitas da Wicca, tem precedência sobre o Deus. Seu alto status reflete-se em títulos tais como a Grande Deusa e a Grande Mãe. De fato, para Starhawk e para muitas outras feiticeiras, o culto a uma suprema divindade feminina constituiu, desde tempos remotos, a própria essência da feitiçaria, uma força que “permeia as origens de todas as civilizações”. Starhawk comenta que “A Deusa-Mãe foi gravada nas paredes das cavernas paleolíticas e esculpida em pedra desde 25 mil anos antes de Cristo”. Ela argumenta ainda que as mulheres com frequência tinham papel de chefia em culturas centradas na Deusa, ha milhares de anos. “Para a Mãe”, escreve, “foram erguidos grandes círculos de pedra nas Ilhas Britânicas. Para Ela foi escavada a grande passagem dos túmulos na Irlanda. Em Sua honra as dançarinas sagradas saltaram sobre os touros em Creta. A Avó Terra sustentou o solo das pradarias norte-americanas e a Grande Mãe do Oceano lavou as costas da África.”
Na visão de Starhawk, a Deusa não é um Deus Pai distante e dominador, principal arquiteto da terra e remoto governante no além. Ao contrário, a Deusa é uma amiga sábia e profundamente valiosa, que está no mundo e a ele pertence. Starhawk gosta de pensar na Deusa como o sopro do universo e, ao mesmo tempo, um ser extremamente real. “As pessoas me perguntam se eu creio na Deusa”, escreve Starhawk. “Respondo: ‘Você acredita nas rochas?’”. Certamente, a força e a permanência são as analogias mais óbvias da imagem da Deusa enquanto rocha.
Contudo, é essa Deusa de aspectos eternamente mutante e multifacetado, a misteriosa divindade feminina que aos poucos se revela e que às vezes nem se deixa ver, que constitui a principal atração para a grande maioria das feiticeiras. Por essa razão, a divindade feminina geralmente é simbolizada por uma lua inconstante, em suas diferentes fases – quarto crescente, lua cheia ou quarto minguante –, correspondendo aos três aspectos da Deusa tríplice: a donzela, a mãe e a velha. A cerimônia conhecida como Atraindo a Lua fundamenta-se nesse simbolismo e representa um dos mais místicos rituais da Wicca. Nessa cerimônia, a alta sacerdotisa de um grupo de feiticeiros invoca o poder da Grande Mãe para então assumir o papel da própria Deusa. Como parte da celebração, a alta sacerdotisa recita a invocação denominada Exortação à Deusa, na qual convoca cada uma de suas feiticeiras para se postar a seu lado:
Eu, que sou a beleza da terra verde, a lua branca entre as estrelas, o mistério das águas, e o desejo no coração do homem, convoco tua alma, ela acena. Levanta e vem até mim.
Entre os que atendem nos dias de hoje ao chamado da Deusa encontra-se um número crescente de feministas. Muitas uniram-se às centenas de cultos à Diana, grupos que se formaram na década de 80, fazendo da feitiçaria feminista o ramo mais prolífico da prática. A maioria desses grupos exclui homens; Z Budapest, a líder do movimento de feiticeiras feministas, chega até mesmo a chamar a feitiçaria de Religião das Mulheres. Considera que os homens não devem partilhar dessa fé. Algumas outras feiticeiras feministas concordam e até levam essa idéia mais longe, dizendo que todas as mulheres são feiticeiras, em virtude apenas de seu gênero.
O fascínio que a feitiçaria exerce sobre as feministas é compreensível, pois elas acreditam, como alega Margot Adler, que a bruxa é “um símbolo extraordinário – independente, inconformista, forte e orgulhosa. Ela é política, embora seja mágica e espiritual”. Ao mesmo tempo, a feitiçaria moderna tem se desenvolvido como expressão especificamente feminina da espiritualidade – com uma fé voltada para uma Deusa apaixonada e provedora, com rituais que reconhecem e até mesmo acolhem a natureza cíclica da vida de uma mulher.
Como tal, a religião Wicca está desprovida do patriarcado e da hierarquia que vieram a caracterizar o cristianismo. “Trata-se de uma religião de mulheres”, declarou uma autora, “uma religião da terra, uma religião difamada pelo cristianismo patriarcal e que agora, finalmente, é reivindicada”. Além disso, ao reivindicar a Deusa, muitas das feiticeiras feministas de hoje estão também reivindicando aquilo que consideram como sua herança de direito. Voltam-se em direção a séculos remotos, em busca de uma época na qual a mulher não era apenas o centro de seu lar como também a guardiã do ritual e a mantenedora da memória tribal.
A escritora Monique Wittig captou esse espírito ao recomendar a suas leitoras: “Havia um tempo em que você não era uma escrava, lembre-se disso. Você caminhava só, cheia de alegria, banhava-se de ventre nu. Você sabia como escapar do encontro com um urso. Conhecia os temores invernais quando ouvia os lobos se reunindo. Mas sabia ocultar-se, sentando nos topos das árvores e aguardando durante horas o amanhecer. Você diz que não existem palavras para descrever essa época, você diz que ela nunca existiu. Mas lembre-se. Faça um esforço para lembrar. E se achar que não é capaz, invente”. Assim, algumas feministas encaram a prática da feitiçaria como uma tentativa de remediar a amnésia histórica e cultural que afirmam ter sido imposta às mulheres através de séculos de dominação masculina.
Para outras, especialmente para aquelas que ajustam a realidade da Wicca para criar suas próprias tradições centradas na mulher, a feitiçaria se aproxima da invenção. “A crença das feiticeiras feministas é em uma nova, embora ancestral, essência de pura veneração”, escreveram duas feiticeiras num jornal da Wicca. “Elas acreditam no futuro. Elas chegam como o vento norte: trazendo o estremecer da mudança e o frescor do renascer”.
As feministas contemporâneas são apenas parcialmente responsáveis pela expansão da Wicca nas décadas de 70 e 80. A prática é amplamente adotada por milhares de feiticeiras e feiticeiros que não são feministas e nem mesmo mulheres, e esses seguidores oferecem uma multiplicidade de razões pessoais para responder ao chamado da Deusa. Na verdade, devido ao grande número de americanos que praticam alguma forma de neopaganismo atualmente, parece haver espaço suficiente na fé Wicca para acomodar feiticeiros de todas as linhas e extrações. Não resta dúvida de que alguns deles são escapistas que desejam fugir da sociedade, diletantes entediados que buscam novidades extravagantes e tem o privilégio de contar com possibilidades de encontra-las.
Contudo, na opinião de Susan Robert, a maioria dos feiticeiros nos Estados Unidos não é formada por ricaços desocupados, mas sim por americanos de classe média que, aparentemente, levam uma vida cotidiana pacata e discreta. Robert observa que os feiticeiros geralmente se negam a unir-se como uma categoria, tendem a ser inconformistas e a ter conservado “a fé simples que a maioria de nós acredita ser própria das crianças”. Outros observadores reportam descobertas semelhantes. A antropóloga britânica Tanya Luhrmann, por exemplo, registra que um grande número de feiticeiros aos quais ela entrevistou a respeito do fascínio exercido pela feitiçaria citaram forças motivadoras tais como “uma necessidade de ser criança, de maravilhar-se com a natureza e voltar a vivenciar uma intensidade imaginativa que parecia perdida.”
Da mesma forma, Margot Adler observou que traços do deslumbramento infantil surgem como características comuns entre os neopagãos que estudou, da mesma forma que uma aceitação tranquila da vida e da morte, acrescida de um desejo de viver em harmonia com a natureza. Apesar das dificuldades que surgem quando se quer classificar os feiticeiros dentro de categorias, as pesquisas feitas com os neopagãos fornecem alguns dados referentes ao que se pratica e por que se pratica. Uma pesquisa de 1980, por exemplo, mostra que os neopagãos são, geralmente, executivos de classe média. A mesma pesquisa também revela que a formação religiosa desses indivíduos assemelha-se muito ao perfil religioso nacional da maioria dos americanos: antigos protestantes englobam quase a metade do grupo e antigos católicos correspondem a pouco mais de 25 por cento do total.
Uma segunda pesquisa, conduzida por Margot Adler em 1985, apontou poucas modificações nesses números, ou no tipo de atividade profissional exercida pelos neopagãos. A pesquisa de Adler revelou um número surpreendentemente elevado de profissionais da área de informática: programadores, analistas de sistema e analistas de software. A uma pergunta acerca da aparente relação entre os computadores e o interesse pelo neopaganismo, um entrevistado respondeu que “os computadores se assemelham à mágica, pois funcionam de um jeito invisível para cumprir suas tarefas”. Outro observou que a informática, tal como o neopaganismo, “atrai pessoas criativas, levemente incultas e solitárias”.
Seja qual for a explicação, a relação entre o mundo da alta tecnologia e a esfera das florestas e matas, própria da feitiçaria, não se limita a esse lado do Atlântico. Em Atrativos da Feitiçaria, seu estudo sobre a feitiçaria publicado em 1989 na Inglaterra, Luhrmann registra uma concentração semelhante de profissionais da informática entre os feiticeiros que conheceu. Ele concluiu que deveria haver uma espécie de atração, com base no fato de que “ambas, a magia e a informática, envolvem a criação de um mundo definido por regras determinadas, e a ação ocorre dentro desses limites”. Luhrmann também reconhece que a explicação verdadeira poderia ser de ordem muito mais simples e prática e que os feiticeiros se tornavam programadores simplesmente porque precisavam de um emprego.
Nos tempos atuais, muitos dos empregos capazes de atrair inconformistas instruídos tem estado na área da informática. Outro subgrupo de neopagãos identificado pelos estudos de Luhrmann e Adler corresponde àqueles que chegaram à prática de suas crenças através do interesse por literatura fantástica e de ficção cientifica. As obras de J.R.R. Tolkien, Ursula K, LeGuin e da sacerdotisa Wicca Marion Zimmer Bradley, entre outras, frequentam as prateleiras dos praticantes da Wicca. Em alguns casos, a vívida experiência da leitura dessas obras acendeu a centelha que levaria a iniciação na prática. Alguns praticantes da Wicca encaram a ficção cientifica, em particular, como uma espécie de literatura religiosa que proporciona uma nova mitologia para nossa época.
Naturalmente, não chega a ser surpreendente o fato de que os praticantes de uma religião alicerçada no ritual e no romance sejam também aficionados de uma literatura que fala de um poder ancestral e de um encantamento perene, ou sobre a vitória do nobre bem sobre o asqueroso mal. Como disse uma feiticeira a Margot Adler: “A prática é um espaço para visionários (…) um espaço onde tudo se encaixa: a beleza, a pompa, a música, a dança, canções e sonhos. Para mim, ela se tornou quase tão necessária quanto comer e beber”. A mensagem que perpassa as várias pesquisas é a de que as pessoas chegam a prática da Wicca pelas razões mais diversas. Para alguns feiticeiros, a força motivadora era a veneração à natureza, ou um profundo interesse por mitologia. Outros descobriram a Wicca depois de terem rejeitado o cristianismo e buscado uma vida espiritual alternativa.
Há ainda quem afirme ter apenas correspondido a um chamado interno e misterioso, semelhante à vocação que induz jovens a ingressar em um seminário ou convento. Muitos praticantes da Wicca mencionam como principal atrativo a ideia de adotarem uma religião que dispensa intermediários e cujas crenças podem ser postas em prática de maneira inteiramente pessoal. Os acadêmicos que pesquisam as causas desse grande interesse pela Wicca sugerem que a feitiçaria ajuda seus praticantes encontrarem um significado, em um mundo desprovido de sentido; rituais, em uma sociedade que anseia por rituais; e proteção contra as pressões exercidas pelas rápidas mudanças sociais e tecnológicas. “Milhares de caminhos levam à prática”, conclui Margot Adler, “mas o principal é que ninguém ‘se converte’ à Wicca. Basicamente, o que todos sentem é: ‘Ah! Sempre acreditei em tudo isso. Só que nunca soube que tinha um nome!’”.
De fato, a maioria dos feiticeiros descreve sua introdução à prática não como uma conversão, mas como um chegar em casa. O resultado é que poucos neopagãos realmente fazem prosélitos. A experiência de Alison Harlow, uma analista de sistemas num grande centro de pesquisa médica da Califórnia, é típica, sendo que no decorrer de seu relato abarca muitos temas comuns à Wicca. “Era noite de Natal”, ela começa, “e eu cantava no coro de uma igreja adorável na margem de um lago e ela estava linda, toda decorada. Era lua cheia e o brilho do luar atravessava as janelas de vidro da igreja. Olhei para fora e tive a impressão de que algo de especial acontecia, mas só que não era dentro da igreja”.
Quando a missa terminou, Harlow desculpou-se e caminhou até o topo de uma colina lá perto. Quando olhou para a lua e depois para a igreja embaixo, repentinamente sentiu uma “presença”. “Parecia muito antiga, sábia e definitivamente feminina”, ela recorda. “Não consigo descreve-la mais do que isso, mas senti que essa presença, esse ser, olhava para mim, para essa igreja e aquelas pessoas dizendo: ‘Coitadinhos! Tem intenções tão boas, mas compreendem tão pouco’”. Harlow também sentiu que seja lá quem fosse “ela”, a presença era incrivelmente velha e paciente; “estava exasperada com o rumo que as coisas tomavam no planeta, mas não abandonara a esperança de que começaríamos a compreender um pouco mais do mundo”.
Levada por esse incidente, Alison Harlow decidiu descobrir tudo que pudesse sobre a “presença” feminina, uma decisão que a levou ao estudo da literatura Wicca, ao contato com muitas tradições da prática, à iniciação como sacerdotisa Wicca e, em última instância, a criação de sua própria assembleia. Os primeiros passos ensaiados por Harlow, seguidos por seu longo aprendizado, emprestam credibilidade a sugestão, segundo a qual abraçar a Wicca é mais um processo de autossugestão do que de conversão. “Envolver-se com magia”, ela escreve, “é como entrar num mundo de faz-de-conta”.
Os noviços encontram muitas ideias novas e exóticas e devem gradualmente tomar decisões sobre o valor que essas concepções possam ter. A prática não requer um compromisso imediato e nem há um conjunto de crenças previamente estabelecido que o noviço deva colocar em prática. Ao invés disso, o novo estudante tem permissão e liberdade para experimentar, como se estivesse fazendo apenas uma experiência. Assim, a prática da feitiçaria precede a crença e esse processo geralmente se transforma em um prolongado período de sondagem da alma. E, principalmente, porque o credo Wicca desafia abertamente as convenções, muitos neófitos necessitam certo tempo para sua fé crescer gradualmente. No decorrer dessa fase exploratória, o noviço descobre novas maneiras de ver o mundo. Luhrmann sugere que essa evolução lenta e geralmente idiossincrática da filosofia pessoal possa explicar, ao menos até certo ponto, por que os feiticeiros tem tanta dificuldade em concordar com um credo comum. Para aqueles que terminam abraçando a Wicca, seu ritual acaba parecendo menos teatral e mais significativo. Finalmente, Luhrmann observa, “a magia parece prática, razoável, sensata e a experiência de se envolver com a prática se transforma em um lado agradável da vida”.
Para muitos praticantes da Wicca, um marco importante foi crescimento em sua fé e a iniciação como feiticeiro. Alguns novos praticantes desempenham uma cerimônia solitária de auto iniciação, uma afirmação de sua crença e da dedicação à Deusa, ou ao Deus. Outros são ao mesmo tempo introduzidos em uma religião e em uma assembleia, juntando-se a um grupo que pode ter de três a trinta participantes. Simples ou elaborado, o ritual iniciático é um sinal exterior à transição de noviço a devoto. A iniciação geralmente inclui benção dos instrumentos do novo feiticeiro e ao término do ritual um voto solene de sigilo sela a cerimônia – e os lábios de seus participantes.
O sigilo, na realidade, é uma fonte de tranquilidade para os feiticeiros, pois até hoje muitos deles ainda vivem tomados pelo temor. Ideias errôneas acerca da feitiçaria e a má interpretação de suas crenças transformam os seguidores da Wicca em alvo de ritos, de vandalismo, discriminação e dificuldades no emprego. Recentemente, um dos julgamentos mais notórios envolvendo a prática de feitiçaria foi uma ação judicial executada por Jamie Kellam Dodge, conselheira do Exército de Salvação em Pascagoula, Mississipi, até sua demissão em agosto de 1987. Dodge, que reconheceu ser feiticeira, foi demitida de seu emprego depois de ter sido surpreendida usando a fotocopiadora de seu escritório para reproduzir páginas com rituais Wicca.
Ela processou seu antigo empregador por discriminação religiosa, e o Exército da Salvação contestou na corte, afirmando que a razão era violar a política da organização, que proíbe o uso das fotocopiadoras para fins pessoais. O advogado de Dodge tentou colocar a questão na seguinte perspectiva: “Se ela fosse uma cristã e estivesse usando essa fotocopiadora, alguém teria se importado? Se ela estivesse usando a máquina para copiar receitas de um livro de culinária, ninguém teria feito objeções”. O caso foi ao tribunal em 1988, e o juiz federal determinou que a demissão de Dodge constituiria realmente uma violação de seu direito constitucional de venerar o que ela bem desejasse.
Chegou-se a um acordo sobre a multa de 1,25 milhão de dólares fora da Corte, mas o valor, não revelado, provavelmente foi substancial. Controvérsias seculares são uma dura realidade para muitos praticantes da Wicca da atualidade. Selena Fox e os membros de seu Santuário do Círculo, por exemplo, vivem numa comunidade rural perto de Madison, em Wisconsin; a certa altura foram obrigados a enfrentar uma batalha legal que durou dois anos para obter reconhecimento como igreja pela administração da cidade e do município – embora o estado de Wisconsin e o ministério da Fazenda já tivessem ha muito lhe outorgado o status de igreja.
A disputa começou como uma audiência de rotina sobre a questão do zoneamento, mas foi tão contaminada pelos antigos medos da feitiçaria como uma espécie de satanismo que a imprensa local passou a referir-se à questão como “a caça às bruxas”. Ao tecer um comentário sobre Fox e exigindo permanecer no anonimato, um vizinho da igreja disse a um jornalista: “Ela me apavora. O que eles fazem não é normal”. E um oficial do município descreveu o Santuário do Círculo como a “anti-igreja”.
A resposta de Fox foi abrir as portas celebrando uma festa e, depois disso, ao menos alguns daqueles que visitaram os 80 hectares do Círculo do Santuário concordaram que as atividades do grupo, que incluíam casamentos e cerimônias de cura planetária, eram tudo menos demoníacas. “Fui ver seus rituais para descobrir o que estava acontecendo”, admitiu um auxiliar da promotoria, pertencente a um comitê estadual de Wisconsin que acompanhava cultos e gangues. “O grupo é muito aberto, quase infantil. O problema é que as pessoas pensam que feitiçaria, satanismo e ocultismo são a mesma coisa”.
A confusão entre feitiçaria e satanismo chegou a estender-se aos altos escalões do governo. Em 1985, ao mencionar uma preocupação crescente com “o aumento de cultos, satanismo, feitiçaria e coisas do gênero”, o senador Jesse Helms acrescentou a procedimentos legais normalmente corriqueiros uma emenda que negava a isenção de impostos aos grupos praticantes de Wicca. A emenda foi ratificada pelo Senado, mas posteriormente derrotada por um acordo da Câmara com o Senado, depois de grupos neopagãos organizarem uma campanha maciça, enviando cartas de protesto. Diante de tal oposição e fazendo um esforço para colocar a Wicca nas mesmas bases legais que as outras religiões, alguns feiticeiros e neopagãos tentaram apoiar-se em seu grande número de adeptos, formando redes de auxílio mútuo.
Entre as proteções constam o Santuário do Círculo, As Feiticeiras da Deusa, a Liga Contra a Difamação dos Feiticeiros. Ao unirem suas forças, muitos feiticeiros viram-se Obrigados a abandonar o véu do sigilo no qual se refugiavam juntamente com a grande maioria de seus colegas. Alguns deles acolhem bem tais mudanças, sentindo que a reticência habitual dos feiticeiros do passado muitas vezes conduziu à apatia. Os “Muitos cristãos só comparecem à igreja no Natal ou na Páscoa”, observa Selena Fox, “e muitos pagãos só aparecem na época de Halloween, a Noite das Bruxas”. A própria Fox está entre as líderes da Wicca mais ativas destacadas. Como parte daquilo que ela chama de seu sacerdócio, ela faz frequentes aparições em programas de entrevistas na televisão e inúmeras palestras em universidades. E nas vizinhanças de onde mora, já trabalhou lado a lado com mulheres de outras igrejas regionais como voluntária da Cruz Vermelha, depois de um furacão ter devastado uma cidade nas proximidades de Barneveld, em junho de 1984. Seus esforços no sentido de dar para a Wicca um ar de respeitabilidade finalmente apresentaram resultados em 1988, quando foi convidada para falar em uma conferência do Conselho Mundial de Igrejas.
Fox refere-se ao evento que ocorreu em Toronto, como um dos melhores momentos de seu sacerdócio. Contudo, a luta para conquistar a legitimidade para a prática pode ter seu preço, A institucionalização da feitiçaria traz na mente de alguns de seus praticantes o espectro da ruptura de valores da feitiçaria. Especialmente inquietante é a crescente demanda por um clero pago feita por algumas facções da Wicca. Os tradicionalistas sentem que uma mudança dessa natureza contraria os próprios ditames da prática, contra o ensino da doutrina em troca de dinheiro. “Se há algo que não quero ver”, diz Doreen Valiente, a sacerdotisa original de Gerald Gardner, “é a feitiçaria se tornar muito parecida com uma religião organizada”.
Mas essa perspectiva parece remota, apesar do surpreendente crescimento das últimas décadas. Em primeiro lugar porque a proliferação de diversas “tradições” torna improvável a centralização. Mesmo assim, muitos especialistas chegam a prever urna contínua expansão para a Wicca e J. Gord Melton, entre outros, detectou a emergência de “uma liderança mais madura e mais sofisticada” para o futuro da prática. Quanto aos problemas inerentes a esse crescimento, é prova que uma religião cuja principal invocação, a Exortação da Deusa, pede júbilo e reverência, seja capaz de superar muitas preocupações cotidianas. “Viver é mesmo muito divertido”, diz uma sacerdotisa, a antropóloga Tanya Luhrmann “A Wicca é a única religião que capta essa graça da vida”.