Os Deuses

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Algumas palavrinhas sobre os Deuses


               Esta é, sem dúvida, uma das partes mais delicadas do estudo da Wicca. Temos uma Deusa, uma figura feminina para crer, uma entidade tão diferente do Deus cristão ou de deuses patriarcais, e a figura de um Deus Cornífero. Desde nosso nascimento, recebemos de nossos pais, avós e outros, um condicionamento social que crê em um Deus masculino e único (Jesus, Deus Pai, Allah, Jeovah, etc.). Já os Wiccanos adoram uma Deusa e um Deus Cornífero. A Igreja Católica transformou nosso Deus em uma entidade maligna, para suprimir a Antiga Religião. Transformaram a imagem de Pã, de Cernnunos Celta, de Hernne inglês na visão dos desenhos medievais do demônio. Transformaram suas imagens de cascos e chifres – símbolos animais de virilidade e força – e seu forte apelo sexual em tudo o que era imagem do Mal Cristão. E o mundo assim o perdeu, ficou mais triste, sem seu riso, seu desejo honesto, sua alegria, sua música. Imagens de masculinidade, em nossa cultura, estão de tal forma ligadas à violência e ao autoritarismo que se torna difícil aceitar  um Deus que sorri, nos dá alegria e força.

               Considerando que há um princípio Masculino e um Feminino em todas as coisas torna-se relativamente simples sua compreensão. Somente com a união do Deus e da Deusa teremos o equilíbrio, o Yin e o Yan de nosso Cosmo. Quem é o Cornífero, Cernnunos, Greenman? É o Pai de toda a Vida, o Pai Natureza. Ele é a energia vital instintiva, tudo o que é indomado, novo, viril, ativo. É também o Rei do Dia, não devemos esqueçer que em alguns de nossos festivais celebramos a vida e a morte do Deus. É filho e amor da Deusa. Se nossa Deusa é tríplice nosso Deus é dual, ele cresce com o ano e decresce à medida que o ano passa, morrendo e renascendo sempre.

               Visualizem o início dos tempos, a simplicidade dos começos. Existiam os xamãs, os sábios que sabiam curar que eram professores, contadores de histórias, homens fortes e alegres com interesse apenas em estarem vivos. Este é o Deus. Enquanto divindade masculina Deus não acrescenta ao homem uma imagem de superioridade sobre a mulher ao contrário do que acontece com religiões  patriarcais. Ele é alegria e força, sabedoria e selvageria. Não possui primazias nem regalias. O que nos conduz ao sacrifício de velhas ideias. Nós o veneramos por que é o Pai da Vida, parte animal, parte homem, força vital e sonho, alegria, desprendimento, natureza. Ele é o equilíbrio e a consciência ecológica. Enquanto bruxas, busquem percebe-lo. Mentalizem-no. Ele é o Jovem caçador mas também é o Velho Sábio, um para cada momento de nossa Roda, do ciclo de nossas vidas.



Para conhecer os Deuses

Por Quíron

               “Além da verdade estão os deuses”.


               Este verso de uma ode de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, um dos maiores poetas da nossa língua e também um ocultista que impressionou Aleister Crowley com os seus exímios conhecimentos de Astrologia, mostra como é importante para quem lida com Magia conhecer os deuses. Primeiramente, é difícil definir o que os deuses são. Foram seres humanos que ascenderam espiritualmente e se tornaram algo mais? São seres que já nasceram Deuses e cumprem determinadas tarefas na organização do Cosmos? Habitantes de outras realidades? Personificações de forças da Natureza? Arquétipos da psiquê humana? Apenas fábulas, lendas? Recursos poéticos usados por antigos contadores de histórias?

               Todas as respostas acima estão corretas. Os deuses são isso tudo e muito mais. Alguns deuses não assumem todas essas características, mas com certeza assumem várias delas, entre outras. Os Antigos são seres de uma complexidade assustadora. Mas é possível conhecê-los e compreendê-los melhor do que o fazemos no nosso estado atual. Para isso é preciso um Caminho que nos leve a eles. Mas antes é preciso mudar a nossa postura perante eles. Em geral, estamos acostumados com a imagem de um Deus patriarcal, um bom pastor, que cuida diariamente da vida de seu rebanho. Porém, ao adentrarmos no campo da Magia, vemos que as coisas são diferentes…

               Ainda que tudo no Cosmos seja abençoado, o Cosmos nem sempre é um lugar bonzinho e tranquilo. Pelo contrário, é muitas vezes inquietante. E um dos aspectos mais inquietantes do Cosmos é perceber que os deuses não se importam conosco, não estão nem aí com a gente. Não estão aqui para nos ajudar nem para nos atrapalhar. Alguns, nem percebem a nossa existência. Outros, nos observam, mas não interferem na nossa vida. Para que interfiram, é necessário chamar a sua atenção. O sentido maior de chamar a sua atenção e fazê-los intervir na nossa vida é o de conhecê-los devidamente, na prática. Conhecer os deuses é conhecer o Cosmos. E como nada nesta Realidade está separado, conhecer o Cosmos é conhecer a nós mesmos. Num certo sentido, a psicanálise junguiana percebeu isso, ainda que trabalhe sob este prisma até um certo limite, o da psiquê. Limite esse que na Magia, nós podemos superar – mas não ignorar.

               Como chamar a atenção dos deuses? Todo povo, toda religião e todo sistema mágico criou os seus métodos, que em geral são muito semelhantes. O mais comum é a oração. Quem ora a um deus (ou Santo) o sente próximo de si. A oração não deixa de ser uma invocação. Há pouca diferença entre essas duas práticas. A oração, como um método emocional de aproximação com os deuses, já propicia um certo conhecimento da sua natureza. E se praticada exaustivamente, como é o caso de monges religiosos, pode realmente levar a uma compreensão muito maior do que muitos ocultistas chegam em sua vida.

               Porém, o caminho do monge é inaplicável à grande maioria das pessoas que lidam com Magia, sejam Magos Cerimoniais, Bruxos, Xamãs etc, pois exige uma reclusão da vida cotidiana. Portanto, a esses a oração deve ser apenas um entre outros recursos, que serão abordados ao longo deste texto. Os deuses possuem vários níveis de complexidade, sendo que os mais elevados só são atingidos magicamente. Mas antes de chegar a estes níveis, é necessário primeiro trabalhar outros níveis, menos elevados. O primeiro passo, antes de qualquer outro, é ler os seus mitos.

Escolha um deus. Leia o seu mito. Sinta o que ele te passa. Pense a respeito, reflita sobre o que ele significa. Leia as várias histórias dele, as suas várias versões. Muitas versões serão contraditórias, mas é inútil procurar qual é a “correta”. Não há versão correta. Cada uma é complementar e mostra um novo ângulo daquele Deus. Ao ler as suas várias histórias, procure perceber cada face dele, pois todos os deuses são multifacetados. Procure imagens do deus escolhido, veja como ele era representado no povo ao qual pertencia. Leia poemas e hinos escritos em sua honra pelos antigos poetas. Procure pesquisar como o povo o enxergava, o que achava dele, que papel cumpria na religião e na vida dos antigos. Toda essa fase de pesquisa é importante, para se começar com uma boa base. Procure saber também quais são os símbolos desse deus, se ele tem uma árvore (ex: o louro de Apolo), um animal (ex: o corvo de Morrighan), um local (ex: as cachoeiras de Oxum), uma bebida (ex: o vinho de Baco), uma arma (ex: a lança de Minerva), um elemento (ex: o fogo de Brighid) e qualquer outra cosia que lhe seja consagrado. Quando você for fazer um trabalho mágico para esse deus, esses simbolismos serão muito importantes.

                Indo além, é preciso observar os deuses na sua vida. As suas atitudes se parecem com as atitudes de que deus? Dioniso, Osíris, Brigid, Diana, Iansã? Procure perceber com que deus(a) você se identifica mais e perceba que ações suas são semelhantes às ações que esse(a) deus(a) faz nos mitos. Essa observação irá te ajudar muito a compreender melhor os deuses que lhe são mais próximos. Pode ser que você se identifique com mais de um(a) deus(a), mas em geral não nos identificamos grandemente com mais do que três deuses de um mesmo panteão. Se você se identificar, procure observar-se melhor e verá que poderá descartar facilmente um ou dois deuses que não têm uma semelhança com você assim tão grande quanto os outros com os quais você se identifica.

               Após se observar sob esse aspecto, você pode também analisá-lo pelo prisma da psicanálise junguiana. Que arquétipo o(a) seu(sua) deus(a) pessoal representa? Há muitos bons livros para leigos hoje que falam a esse respeito e alguns sites também. Procure e achará. Algumas deidades também se relacionam com determinados arcanos do tarô. Por exemplo, O Mago é Hermes, A Justiça é Maat e Thêmis, o Enforcado é Odin e Jesus Cristo e assim por diante. Procure todas as relações possíveis que o(a) deus(a) tem com qualquer coisa que seja, incluindo a mitologia comparada.

               Para ampliar o seu conhecimento de correlações que podem ser feitas ao seu deus, vale a pena também estudar um pouco a Cabala. Vemos que a Árvore da Vida é composta por dez esferas, chamadas sephirot, e que cada deus sempre pode ser relacionado com uma delas. Como exemplo, cito Mithra em Tipheret, Gaia em Malkuth, Lillith em Daat e assim por diante. Notando a relação entre o seu deus e uma das sephirot, pode-se procurar quais são as características daquela sephirah (singular de sephirot) e assim aprofundar o seu estudo sobre os deuses. Além disso, muitas das sephirot estão ligadas umas às outras. Por exemplo, Malkuth (a Terra) liga-se à Yesod (a Lua), que por sua vez se liga a Tipheret (o Sol). Desse modo, Gaia se liga à Diana, que se liga a Apolo. Podemos ampliar essas relações e trabalhar com a mitologia comparada do ponto de vista da Cabala. Através desse esquema da Árvore da Vida podemos, por exemplo estudar a relação entre a Pachammama (a Mãe-Terra peruana), Sin (deus sumério da Lua) e Jesus Cristo (deus cristão do Sol). Isto é fascinante, pois através dessa análise, somem todas as barreiras entre os mais diversos panteões étnicos e religiões do mundo, podendo-se unir tudo em uma único sistema.

               Para o estudo que eu proponho no parágrafo acima, é muito útil se ter em mãos o liber 777, de Aleister Crowley, que é uma grande e competente tabela de correlações sobre o tema. Assim, vemos como a Cabala teórica pode também ser útil aos pagãos, mesmo que esses não tenham interesse em Cabala prática, Alta Magia etc. O mais interessante desse esquema da Árvore da Vida é que ele é universal, aplicável à análise de todos os caminhos, pagãos ou não, matriarcais ou patriarcais, não importa, e ajuda a entender os seus deuses pessoais.

               Mas, uma advertência, lembre-se de não se identificar demais com o seu deus. Os nossos deuses pessoais são as nossas máscaras e não o nosso Eu. As máscaras são necessárias para os relacionamentos humanos, mas não são nós mesmos. Pode ser que o seu deus pessoal mude de tempos em tempos. Pode ser que na juventude ele seja um, na vida adulta outra e na velhice outra. Ao longo da vida, vá percebendo isso. E, lembre-se, por mais que você se identifique, por exemplo, com Apolo, há em você um pouco de todos os outros deuses do mundo, um pouco de Seth, um pouco de Freyja, um pouco de Ganesha etc. Trabalhar com os diferentes tipos de deuses pode enriquecer muito a pessoa.

               Quando alguém quer parar de se identificar com a sua máscara (deus pessoal) pode tentar agir como um outro deus, temporariamente. Isso aproximará este outro deus de si mesmo e a pessoa poderá também compreendê-lo melhor. Acredito que trabalhar com diversos tipos deuses é importante para que tenhamos uma maior compreensão do Cosmos e de nós mesmos. Todo esse trabalho psicológico, de observação e o trabalho emocional com a oração são importante, mas não são o suficiente. Há também o trabalho mágico. Isso é feito através de rituais e de meditação. Eventualmente, a meditação está incluída no ritual. Os rituais feitos para se conhecer melhor um determinado deus não são simplesmente aqueles em que fazemos um pedido a eles e nada mais. Pode até haver isso também, mas o mais importante é haver um forte contato com o deus e aprender com ele. Esse é o objetivo desses rituais.

               Há em vários livros rituais voltados a diferentes deuses e deusas, tais como Maat, Netuno, Diana, Brigid, Cernunnos etc. Procure e achará. Porém, seja seletivo a respeito destes rituais. Não saia fazendo qualquer ritual sem analisá-lo com cuidado e saber se ele tem fundamento ou não. É melhor não fazer ritual nenhum do que fazer um ritual ruim. Quando se deparar com um bom ritual para um deus que você quer trabalhar, então realize-o. Para conhecer intimamente um deus, não basta fazer um ritual para ele apenas uma vez! Este é um trabalho lento e contínuo. Há pessoas que levam anos conhecendo intimamente um deus apenas. Portanto, nada de pressa nesta etapa. Aliás, não pode haver pressa em nenhuma etapa de um trabalho mágico. A Magia exige paciência e dedicação duradoura do praticante. Não é uma distração para os fins-de-semana, feriados e horas livres.

               Sempre que fizer um ritual para algum deus, anote os resultados no seu diário mágico. Anote os fenômenos que ocorreram, se tiverem ocorrido, que sensações você teve, o que pensou, o que sentiu. Se teve alguma visão, alguma comunicação verbal recebida do deus, se à noite, depois do ritual teve algum sonho relacionado a ele, anote também. Não permita que outros leiam as suas anotações. Um dos verbos mais importantes da Magia é calar. Com o tempo, vá relendo as suas anotações, a fim de verificar o seu progresso no estudo daquele deus.

Para ter uma compreensão ampla dos deuses, você poderá querer trabalhar com vários tipos de deuses. Pois eles podem ser agrupados de acordo com as suas características. O ocultismo têm vários tipos de classificação. Novamente, eu cito a Cabala teórica, que classifica os deuses de acordo com as sephirot da Árvore da Vida. Mas há outras classificações. Como a de acordo com os quatro elementos. Por exemplo, Pachammama é relacionado à Terra, Iemanjá relacionada à Água, Bóreas relacionado ao Ar e Vulcano é relacionado ao Fogo. Porém, nem todos os deuses se relacionam tão diretamente a algum dos quatro elementos. Por exemplo, é praticamente impossível relacionar Cronos a algum desses elementos. Isso faz este sistema de classificação ser limitado e pouco flexível, ainda que tenha a sua utilidade.

               Um modo muito comum de se classificar os deuses é de acordo com os planetas da astrologia: sol, lua, marte, mercúrio, vênus, júpiter, saturno, urano, netuno e plutão. Seria bom nisso também incluir a Terra como mais um planeta. Praticamente todos os deuses do mundo podem ser relacionados a algum destes planetas (em especial, os deuses greco-romanos, obviamente). E alguns deuses se relacionam a mais de um planeta simultaneamente, tais como Thot, que é essencialmente mercuriano, mas também é lunar.

               Usando esses sistemas de classificação de tipos de deuses é possível se montar um panteão pessoal, em que você pode incluir um ou mais deuses de cada tipo, sejam eles do mesmo panteão étnico ou não. Desse modo, com o tempo pode-se alcançar uma boa compreensão do papel dos deuses no Cosmos sem precisar se ater a apenas um panteão étnico. Isso é muito interessantes para os magistas e neo-pagãos de hoje, que em geral não gostam de se ligar a um panteão apenas. De todos esses sistemas de classificação, o mais interessante parece ser o da Cabala, pois nela estão incluídos também outros sistemas, tais como o dos quatro elementos, o astrológico, além da classificação pelos arcanos do tarô.

               Neste artigo é importante falar um pouco dos chamados deuses negros. Esse é um termo usado para designar aqueles deuses que representam o aspecto destrutivo e/ou sombrio do Cosmos, tais como Lillith, Hécate, Exu, Morrighan, Seth, Loki etc. Não é fácil lidar com eles. Um preparo se faz necessário. Recomendo que primeiramente se trabalhe com deuses mais tranquilos, como Brigid, Ísis, Apolo e outros.

Muito embora todos os deuses, mesmo que não aqueles comumente classificados como deuses negros, tenham a uma face pouco benevolente… Apolo, por exemplo, muitas vezes pode ser terrível e na mitologia grega ele é responsável por muitas pragas que assolam o povo grego, como está muito claro logo no começo da Ilíada, de Homero. Da mesma forma, deuses “negros”, tais como Morrighan, em certas situações também podem ser, ao seu modo, benevolentes. Os deuses, todos eles, são multifacetados e essa classificação entre “deuses brancos e deuses negros” tem a sua utilidade, mas também é limitada (como toda classificação o é). Mas os deuses negros não deixam de ser potencialmente perigosos a quem não sabe lidar devidamente com eles. Vários dos deuses classificados como tal procuram dominar o indivíduo que o invoca. Em geral, isso acontece de uma forma tão sutil que não a pessoa nem percebe.

               Citando uma experiência pessoal, lembro de quando lidei com Lillith sem estar preparado para isso. Hoje, recapitulando a minha vivência com ela, vejo que Lillith é uma deusa que dá uma falsa sensação de poder. Ela procura fascinar quem a invoca, mostrando as mil maravilhas que ela poderia lhe proporcionar. Porém, nada do que oferece ela realmente dá. Em quem trabalha com ela sem preparo, Lillith só proporciona uma vida de confusão e desequilíbrio mental. E nesse processo, como a maioria dos deuses negros faz, ela domina quem a invoca. Por isso eu acredito que para lidar com Lillith e outros deuses negros é preciso um equilíbrio psicológico muito grande e já uma boa experiência com entidades mais leves. Caso contrário, o risco de se perder no Caminho é muito grande. Tendo-se preparo para lidar com os deuses negros, pode-se aprender muito com eles. Esses não são deuses que devem ser desprezados. São parte do Cosmos, como todos os outros deuses, e por isso também devem ser estudados e trabalhados, por aqueles que realmente sabem fazê-lo.

               Finalizando este artigo, acredito que ele dá as bases sobre o trabalho com os deuses dentro de uma concepção neo-pagã e também de alguns ramos modernos da magia cerimonial. Porém, o assunto é extenso e apenas isso não o esgota. Aconselho a todos que queiram realizar este trabalho, estudar bastante a questão, conversar com quem já tenha mais experiência nele e ir com cautela e perseverança neste Caminho. Seguindo-se as regras mínimas do bom-senso ele será seguro e muito enriquecedor.